nando reis [2005]
a letra n
por Marcus Preto
Ele só tinha meia hora para essa entrevista. Depois que deixou os Titãs, sua banda de origem, para virar só Nando Reis, tem lhe sobrado mesmo bem pouco tempo livre. Agora, faz entre três e quatro shows por semana [em cidades diferentes] e, nos intervalos, ainda se envolve em projetos paralelos – principalmente compondo para segundos e terceiros [está preparando canções inéditas para figuras tão distintas quanto o Monobloco, o Jota Quest, Zé Ramalho, Sandy & Junior e até para o São Paulo Futebol Clube]. A demanda é grande.
Como meia hora não é tempo suficiente nem para um “bom dia” do prolixo [mas nunca supérfluo] Nando, o jeito foi acompanhá-lo em sua rotina particular – o que incluía ir buscar seu filho Sebastião na escola. Enquanto dirigia seu carro, Nando contou coisas, fez associação de idéias, lembrou de suas perdas e separações, repensou suas músicas, fez auto-análise. Coisas que, segundo ele, nunca havia dito numa entrevista. A viagem durou pouco mais de uma hora, os dois lados de uma fita cassete. Ou, em outro tempo, mais ou menos duas décadas e meia
Você já levou suas músicas na psicanálise?
Claro que sim. É um material farto, ali está tudo. Eu faço música um pouco com essa urgência, como expressão vital. Claro, não só isso, nunca quis revestir minhas músicas de subscrições pomposas. Minha música é pra tocar no rádio. Mas o caminho... a música surge e se evidencia com clareza dentro de mim principalmente quando é algo que eu sei do que está acontecendo. Ou quando não sei bem, mas tento cercar e definir como um mosaico, juntando as coisas pra que aquilo ali retrate uma emoção que muitas vezes parte de uma sensação real. Não, eu não faço crônica nem reportagem. A música pode partir de um estímulo que vem da realidade, mas ela vai sempre passar por um arco mágico da transformação e da criação. Por isso ela não é minha, não é nada, não tem mensagem, não tem porra nenhuma. Tem que servir a cada um. E as pessoas que se identificam têm a tendência de achar que a música foi feita pra elas. Esse é o barato, esse é o tesão, é por isso que as pessoas decoram uma música, por isso que querem ouvi-la.
Há o mito que a dita “música jovem” requer letras diretas, no entanto a sua é o oposto disso. A que você diria, então, que se deve essa identificação com esse público?
Eu fico espantado. A Sofia, minha filha, um dia me falou: “Você já reparou que as suas letras que fazem mais sucesso são aquelas que têm as letras mais diretas?”. Eu não tinha pensado nisso, porque até tento evitar esse tipo de raciocínio. No entanto, quando analiso, vejo que não é verdade. “Relicário” e “Segundo Sol” [dois dos maiores sucessos de Nando, gravados também por Cássia Eller] são letras bastante complexas ou pouco usuais. Elas têm imagens, não são tão compreensíveis como é uma narrativa.
No entanto, elas é que foram parar no rádio. Como isso se explica?
Acho que o principal fator nesse processo é a melodia. É ela que, inconscientemente, alcança mais clareza no íntimo das pessoas e permite a identificação. Mas é muito tolo eu falar assim porque música popular é a somatória da inter-relação de tudo, inclusive arranjo e interpretação. Eu tenho quase que uma determinação a me manter um tanto possível distante de investigações muito racionais sobre o que eu faço. Porque eu já sou bastante perturbado e tenho conflitos demais pra criar.
Eu fiz uma entrevista com os Titãs há pouco mais de um ano e eles se confessaram ofendidos por terem percebido que sua música “Os Cegos do Castelo” [sucesso do Acústico MTV dos próprios Titãs, de 1997] se referia a eles e já era uma indicação de que você sairia da banda. Era uma pequena sabotagem? Você fez mesmo a música pensando nisso? [“Eu não quero mais mentir/ Usar espinhos que só causam dor/ Eu não enxergo mais o inferno que me atraiu/ Dos cegos do castelo me despeço e vou/ A pé até encontrar/ Um destino e o lugar/ Pro que eu sou”]
[surpreso] Eu acho essa interpretação meio louca. Não é assim. “Os Cegos do Castelo” não é, de maneira nenhuma, uma alusão à denominação dos Titãs. É muito mais pessoal do que de terceiros. Mas é curioso. [pensando] Uma música é isso. Sua força é justamente poder estar sempre se reconfigurando de significados através da interpretação de quem ouve naquele momento. É curioso, eu não imaginava mesmo que eles pensassem isso dessa música.
Pode-se dizer que a presença de Cássia Eller foi fundamental nesse seu processo de desligamento dos Titãs, já que foi ela quem o evidenciou como grande compositor e artista “individual”. E hoje, qual é a importância dela na carreira de Nando Reis?
É engraçado: o tempo passa e a compreensão da presença e da importância dela permanece absolutamente viva. O “All Star” [música que ele compôs para a cantora – e ela gravou] costuma ser o auge de emoção dos meus shows. E é uma música descritiva da minha relação com ela. É muito triste ver sempre interrompida – no momento em que foi interrompida a vida dela – aquilo que seria sua participação na minha vida. Mas a música tem uma eternidade. E ter tido tantas músicas gravadas por ela – e uma grande parte dessas músicas estarem tão presentes naquilo que eu faço hoje – faz com que a Cássia continue sendo uma parceira e uma idéia muito presente.
Mas você não faz mais as suas músicas para a voz dela, como diz na letra de “All Star”...
Cara, volta e meia eu penso assim: “Puta, a Cássia cantando essa música ia ficar lindo!”. Pela força espantosa de nossa afinidade, nossa história seria “pra sempre” se ela estivesse viva, ainda. Eu, sinceramente, não fico cutucando a lacuna. É sofrido e, de certa maneira, já foi uma puta realização. Eu tenho que olhar pras coisas que foram feitas – e elas são muito grandes. É a sorte de ter coisas que aconteceram, e não só desejos que não foram. Eu teria milhões de possibilidades. Inclusive uma, da qual eu tinha total consciência, de que haveria um ponto onde a gente iria ter que se separar, mesmo ela estando viva. É tão eterna a aliança que, mesmo separados, estaríamos juntos.
Você pensava na inevitabilidade da separação, então?
A partir de um momento, eu achava que a Cássia teria que ter outra experiência, porque aquilo teria que se transformar. Eu não considerei nenhuma das relações de trabalho que tive como se elas pretendessem além daquilo que alcançavam no momento da realização. No caso da Cássia, irreversivelmente não há mais futuro – porque ela morreu. Diferente de outras parcerias que mudaram, como com a Marisa [Monte, de quem Nando foi parceiro musical e com quem teve um romance], por exemplo. Eu fiz um trabalho muito intenso com ela num determinado momento. Depois, a gente se distanciou e se desligou. Mas há sempre a possibilidade de voltar – ou não. Porque ela está viva e eu também.
Falando em Marisa, é possível fazer uma leitura onde o amor da frente Arnaldo-Marisa-Brown é a coroa da mesma moeda que tem Nando-Cássia como cara. Enquanto vocês dois de cá se ensangüentam, se rasgam e botam o amor num relicário [vêem o amor de dentro para fora], eles de lá tratam esse sentimento com certa frieza irônica [vêem o amor de fora para dentro], ainda que se demonstrem mesmo apaixonados. O amor “relicarista” é, então, o outro lado do espelho do amor tribalista?
A grandeza de um trabalho artístico é a sua liberdade de expressão, sua originalidade, sua busca pela forma única, falar sobre os assuntos mais comuns do mundo. E, na mesma medida, está a liberdade interpretativa e analítica que tem quem ouve. Então, o que você está falando tem total cabimento. Eu não digo que seja certo ou não, porque não acredito muito nessa minha habilidade por estar comprometido e inserido demais nisso tudo. Eu não fico me analisando. Eu jamais poderia pensar que “Os Cegos do Castelo” ganharia uma interpretação tão surpreendente – e completamente cabível – como essa que você me disse que os Titãs fizeram, por exemplo. Acho que a minha forma é bastante característica: o tipo de abordagem, de jeito, de olhar. É detectável esse estilo no conjunto – nas melodias, no meu jeito de cantar e nas palavras que eu escolho. Por isso, o que você está falando faz sentido. Eu acho que é isso, mesmo. Eu falo recorrentemente sobre um mesmo tema: a questão do amor e tal. E, nesse ponto, a Cássia foi muito consoante. Mas eu também fui parceiro da Marisa...
Foi, mas você nunca foi tão Arnaldo Antunes quanto nas músicas que você compôs para ela. “Diariamente” é uma letra bem Arnaldo Antunes.
Exatamente. Mas tem o fato de eu estar, naquele período em que trabalhei com a Marisa, muito perto do Arnaldo. Eu estava em um estágio do aprendizado e do desenvolvimento de fazer música muito próximo dos Titãs – banda cuja marca estrutural e poética teve muito dessa coisa formal, rigorosa. Isso, aliás, encontrou seu melhor resultado pela brilhante contribuição do Arnaldo.
As influências concretistas...
Arnaldo é um artista brilhante! Porque dentro dessa forma rígida, a sutileza da escolha de cada palavra se abre em inúmeras possibilidades interpretativas – o que faz dele o talento que é. Não há nele nenhuma dureza – diferente da minha, digamos assim, coloquialidade mais explícita. O “Diariamente” é, de fato, uma música que foi feita a partir de uma listagem de associações – e, inegavelmente, você pode reconhecer ali meu período Titãs. No entanto, ela é contraposta por uma melodia absolutamente minha e que dá à música o charme que ela tem. São só dois acordes, uma estrutura rigorosamente repetida ao longo de seus sei lá quantos versos de associações entre palavras que se completam de significado somente na sua conclusão, que é “para você o que você gosta, diariamente”. Esse verso dá a todas as associações anteriores um sentido surpreendente. Não se trata de mera listagem. É uma música extremamente autobiográfica. Eu estou, literalmente, me descrevendo e me oferecendo pra uma mulher. Para aquela mulher. “Eu quero que você tenha tudo isso, diariamente”.
Outra música emblemática do seu repertório é “Relicário”, de grande impacto tanto na gravação da Cássia Eller quanto na sua. Tanto que as pessoas, mesmo não entendendo exatamente o que a letra quer dizer, sabem cantá-la de cor. Como você a entende?
O “Relicário” eu comecei a fazer em Porto Alegre, no dia que seria o aniversário da minha mãe, 17 de agosto de 97. E a mamãe gostava de um bolero chamado “Relicário”, se eu não me engano. Enfim, essa palavra veio e estava associada a alguma coisa que me lembrava a minha mãe ou o gosto dela. Essa música é uma mistura rica de imagens, metáforas como o tempo, o dia e a noite – mas numa situação de separação que talvez tenha a ver, inconscientemente, com minha mãe e com a morte dela. No entanto, essa separação é retratada sob o ponto de vista de uma paixão inalcançável que, necessariamente, não encontrará alento em sua realização.
É o amor “amputado” pela morte, como aconteceu com sua mãe e, depois, com a própria Cássia?
Mas existe a idéia de perpetuação em “da semente dura, o futuro amor” – como se aquele amor, independentemente da vida ou da realização dele, estará ali plantado eternamente, tal o conforto do bem estar daquele desejo. Mesmo que haja o contraponto do sofrimento da idéia da separação. Música sempre procura preencher um buraco. Pra que você não sofra tanto ou chegue à categoria de sublimação, sei lá.
Na canção “Hoje Mesmo”, do disco A Letra A [2003], também existe essa mulher, que é sua mãe, mas também é uma namorada ou algo assim.
Aquilo é uma descrição de uma convivência e de uma percepção de uma emoção com uma mulher a partir muito mais da observação do que da prática. E essa descrição da composição desse gestual evidentemente contém a grande matriz que é a mãe. E ali é citado, explicitamente: “O filho cria a mãe”. A ambigüidade dos dois sentidos: criar de “inventar” e criar de “cuidar”. E, principalmente, porque se trata da mãe que eu não tenho mais.
Nesse seu show, você incluiu canções de Wando e do Roupa Nova, que são consideradas “de mau gosto” pela elite musical. O que esses artistas representam para você?
Vou fazer um show, eu, Wando e Wanderléa. Vai ser um tesão! Eu sou totalmente das músicas românticas. “Whisky a Go-Go” [do Roupa Nova] tem uma melodia fantástica e ficou estigmatizada como música de segunda categoria. Os Titãs têm como gênese, como essência da sua constituição artística, a valorização desse tipo de música. O total desprezo por esse tipo de barreira. E sem nenhuma ironia. Eu detesto paródia, eu detesto a idéia da “apropriação inteligente”. Como quem diz: “Ah, isso é tão qualquer nota que qualquer um pode fazer, então nós, que somos cults e inteligentes, vamos fazer de brincadeirinha músicas bregas”. O caralho! Quem sabe fazer, sabe! O Wando é um puta compositor fodido! De altíssimo nível, bom melodista. Ele me mandou uma música que eu vou concluir, uma parceria nova.
Parceria de vocês dois?
Tá lá em casa, uma puta música legal. Eu tenho muito prazer e faço questão de falar. Sempre tem gente na platéia que reclama ou acha que há uma dose de ironia. Mas não tem. São componentes complementares do que eu sou, do que eu gosto e do que foi a minha informação, do que é um parâmetro inconsciente na hora de compor. E funciona muito bem nos shows. É quase como o meu desejo de estar na platéia, e não no palco. E há outros que eu poderia cantar: Dalto, Biafra... Dalto é bom pra caralho!
Cantada ao lado de “Whisky a Go-Go”, a sua canção “Do Seu Lado”, gravada primeiro pelo Jota Quest, funciona no seu show mais ou menos assim, como música de baile, é essa a idéia?
Ela se tornou uma música de baile e esse mérito é todo do Jota Quest. Eu não tenho nenhum problema em dizer: eu acho a música linda, mas ela foi magnificamente gravada e arranjada pelo Jota Quest. Essa vocação de ser músico de baile não é nada desprezível. É um puta carisma e uma capacidade que mistura técnica com expressão, espontaneidade, legitimidade. O que é o mais louco: o cara é espontâneo cantando música dos outros. E o Jota Quest tem essa virtude. Eu me surpreendi: fiz uma música que tem essa característica dionisíaca, mas isso só me foi revelado através da gravação dela por uma outra banda.
E a história com Sandy & Junior?
Gosto deles e não tenho nenhum preconceito e restrição. Pelo contrário: adoro que gravem minhas músicas. Eles têm um puta respeito e admiração e vai ser uma honra se eles gravarem. Fiz uma música que pode ser bacana, nunca tinha feito nada com essas características. Nem fiz pensando neles, mas agora que surgiu o convite eu vou mostrar, não sei se vai interessar. É porque ela é pra ser cantada por um homem e uma mulher, porque eles conversam. É a história de um falando do outro. Não sei se isso vai dar certo, se é o caso, mas é essa a música em questão.
Você tem feito uma média de três shows por semana desse novo disco, o MTV ao Vivo. Isso é bastante bom, não?
O show é uma etapa importantíssima da vida da música, que me realimentará pra que eu faça outras músicas. A experiência do que é a trajetória de uma música se dá também – e principalmente, no meu caso – na etapa que é subir ao palco e tocar, dividir aquilo com a banda e com o público em lugares diferentes.
Sair de um disco completamente autoral [como era A Letra A] e cair num projeto popularizador [como é o MTV ao Vivo] foi fundamental para você nesse momento? O que sua carreira ganhou com isso?
Muita coisa. A princípio, eu tinha uma certa resistência em fazer um disco ao vivo com a sensação que poderia ser informação redundante. E escrúpulos, não querendo parecer que eu estivesse com ausência de músicas ou informações novas. Mas eu era o autor e tinha tantas músicas conhecidas que nunca eram associadas a mim, pois haviam sido gravadas por outros cantores. Em segundo, em relação à sonoridade. Havia uma idéia muito vaga da maioria das pessoas sobre o Nando, MPB, cantoras, Cássia Eller, Titãs... Então, um disco ao vivo começou a se configurar como um passo importante na minha trajetória de melhor precisão e foco no meu contorno como artista. E uma carreira se trata disso, também. Aquilo que me interessa pra a expansão e a difusão da minha música tem que considerar muitas outras coisas que não só a produção autoral. Então, eu refiz alguns dos meus conceitos dentro da realidade. Esse disco tem me possibilitado aquilo que eu mais queria: ter a chance de chegar, através da divulgação e da execução, a um novo estágio de expansão pra esse meu trabalho, fazer mais shows e injetar à minha carreira auto-suficiência.
Você não é um cantor nos moldes convencionais. Como é driblar os conceitos estéticos vigentes, onde só quem tem vozeirão é aceito com facilidade?
E aí é que está: o grande intérprete de música popular não é, necessariamente, um ginasta. Não se trata de uma exibição de virtuosismo técnico. É você falar e as pessoas se tocarem, ficarem emocionadas com aquilo. E isso acontece. Eu sou um cantor bastante heterodoxo. O tipo de voz, as minhas características e limitações. No entanto, as pessoas se tocam e se emocionam. E é isso que faz a qualidade – ou não – do meu trabalho.
Você acha que, com a queda das gravadoras e a Internet entrando em cena como principal divulgadora da música, muita coisa vai mudar na vida dessa geração de músicos que já está acostumada com o esquema atual?
Eu não consigo deixar de pensar que, por mais que se modifique a forma de divulgar a música, uma coisa permanece igual: um autor que seja inspirado e criativo vai ser sempre ouvido. Não é por culpa de mudança de formato que não surge um outro Roberto Carlos. É foda nascer um artista desse porte. E quem faz música hoje quer se expressar da mesma forma que há 100 anos. Embora tenha muito mais essa sedução do sucesso. Mas não é tão diferente. Posso estar sendo totalmente ingênuo, mas a minha aflição em fazer música hoje é a mesma que eu tinha em 1979. Talvez um pouco maior, porque eu estou ficando mais velho. Mas isso não tem nada a ver com CD, Kazaa ou iPod.
[íntegra da matéria publicada na revista Simples, em março de 2005]
<< Home