Orelhadas sobre músicas, músicos e música

sexta-feira, 22 de julho de 2005

arnaldo antunes [2004]

de palavra em palavra
por Marcus Preto

Arnaldo Antunes vive em muitos tempos. Engatando sempre um trabalho no outro, ele se divide entre a produção de poesia, trilhas de cinema e dança, performance, vídeos e, lugar onde ele acredita se expressar melhor, canções. Para não se perder entre uma coisa e outra, tem como farol a Palavra.

Completando um ciclo num trabalho de sucesso comercial transformador para sua carreira, o projeto coletivo
Tribalistas [ao lado de Marisa Monte e Carlinhos Brown], Arnaldo lança agora Saiba, seu sexto disco depois que deixou a banda que o projetou, os Titãs.

Se suas canções sempre foram lúdicas, agora elas namoram a temática infantil com intensidade multiplicada. Algumas até remetem – nunca de propósito, segundo ele – aos clássicos infantis de outrora, feito
Casa de Brinquedos e Arca de Noé. Mas isso é só uma parte.

Saiba, seu disco novo, tem músicas que remetem imediatamente à infância – melódica e poeticamente. Mas trata-se, no entanto, de um disco para adultos. Você está tentando quebrar fronteiras entre música adulta e música infantil?
Não tive essa intenção. O disco nem se parece com isso. É que minha poética normalmente passa pelo olhar infantil. É uma visão com um estranhamento, muito próxima da maneira da criança ver o mundo. Isso não é de hoje. “Beija Eu” [música que Marisa Monte gravou em 1991], por exemplo, vem de uma maneira infantil de dizer as coisas. O Oswald de Andrade tem um poema curtinho que diz assim: “Aprendi com meu filho de 10 anos que a poesia é a descoberta das coisas que eu nunca vi”. É isso: tem a afinidade, mas não tem a intenção de ser para o público infantil. Esse é outro território.

Além de toda a arte gráfica de Saiba, o disco começa dizendo que "todo mundo foi neném"...
O que tem na idéia de colocar os pezinhos do dia em que eu nasci carimbados na capa é essa coisa de achar que esse é um disco muito pessoal, íntimo. Tem a minha caligrafia, a minha assinatura... E a pegada é uma coisa arquetípica, também. Desde o homem das cavernas existe essa obsessão de deixar a marca da mão, a pegada do homem na lua, a calçada da fama... é verdade que a melodia de “Saiba” [a música que abre e dá nome ao disco] eu fiz colocando meu filho para dormir. A letra só veio um ano depois. Mas é uma letra muito adulta. Trata dessa coisa do mito, que é sempre muito desprovido de humanidade e, quando você o traz para a perspectiva humana, aquilo dá um estranhamento, também.

Dá até pra fazer algum paralelo com “Velha Infância”, a música dos Tribalistas?
Sim! “A gente brinca...”, essa coisa da pureza de se ver as coisas, com olhar virgem, quase como uma brincadeira de infância. Eu tenho quatro filhos, tenho essa afinidade.

Depois do sucesso avassalador dos Tribalistas, o esperado seria um disco de Arnaldo Antunes desassociado de Marisa Monte e Carlinhos Brown - para deixar claro o caráter solo da coisa. No entanto, Saiba traz as parcerias e as vozes dos outros dois. Você não teve medo dessas "sombras", ou de se tornar, você próprio, de alguma forma, uma "sombra" deles?
Não, se tivesse medo não teria posto. Eles não estão no disco por nenhum interesse mercadológico, mas por uma afinidade musical. O projeto dos Tribalistas só estreitou ainda mais uma afinidade artística e uma amizade que já existiam. É muito natural que continuemos fazendo coisas juntos, como temos feito. Entre a gente não tem grilo nenhum. São as pessoas com quem eu tenho mais facilidade, naturalidade, fluência e estímulo para compor desde os Titãs, que são as pessoas com quem eu mais compus na vida. Para se ter uma idéia, todo o repertório do disco dos Tribalistas foi composto em uma única semana. Eu não fico pensando se vão achar que sou uma sombra, eu faço o que minha ansiedade artística me manda fazer. Não tenho esse pudor. Faço motivado pelo que mais genuinamente eu quero para me expressar.

Tratando de música jovem brasileira, você forma com Marisa Monte e Brown uma frete sólida. Outra seria a que Nando Reis armou com Cássia Eller e agora tenta levar sozinho. Você compara essas duas frentes?
Somos todos uma mesma frente. Marisa tem um monte de música com o Nando, Cássia gravou música minha... É uma galera que está junta. E tem também Adriana Calcanhotto, Seu Jorge, Marcelo D2, Ed Motta... cada um com suas características.

Mas é possível fazer uma leitura onde o amor da frente Arnaldo-Marisa-Brown é a coroa da mesma moeda que tem Nando-Cássia como cara. Enquanto os dois de lá se ensanguentam, se rasgam e botam o amor num relicário, vocês de cá tratam esse sentimento com certa frieza irônica ["amor I love you"] ou num delírio entre a sedução e a repulsa ["o amor é feio, tem cara de vício"], ainda que se demonstrem mesmo apaixonados. O jeito de amar tribalista é, então, inverso ao jeito de amar "relicarista"?
Eu acho essas interpretações muito redutoras. Não acho que o amor dos Tribalistas seja irônico. Essa não é uma palavra que pode abranger. Você pode até encontrar uma ironia em algum verso de “Já Sei Namorar”, mas não vejo isso como uma característica do trabalho da gente. E você pode também encontrar ironia nas canções do Nando. Com essas reduções você pode perder grande parte, é uma interpretação onde não cabe toda a obra. Eu desconfio disso tudo. Prefiro acreditar na individualidade de cada trabalho. E quando você fala em duas frentes, parece que existe uma disputa. Não gosto de ver o território da música popular como disputa. A gente é super colaborador, a gente troca. (vale comparar com a resposta de Nando Reis, para quem essa mesma pergunta foi feita)

Esse é um olhar equivocado da obra, então?
Tem duas coisas aí: primeiro que eu estou muito dentro para ter esse seu olhar de fora. E eu acho que esse é um olhar muito mais da mídia, que tenta esclarecer os fenômenos artísticos de alguma forma, explicá-los para o público. Só que eu acho que essa explicação tem esse perigo de ser redutora. Eu prefiro as exceções que as regras, sabe?

Você é compositor, cantor, videomaker, poeta, faz performance, mexe com artes gráficas e, recentemente, fez cenografia para o São Paulo Fashion Week. Tem futuro essa nova faceta?
Fiz uma trilha para a Ellus junto com o Felipe Venancio. Começou porque eles queriam fazer umas roupas usando algumas estampas encima de poemas visuais meus. Rolou de eu fazer a trilha e depois a coisa do cenário também... eram umas projeções com animações à partir de umas artes finais que eu fiz de poesia visual. Foi superlegal trabalhar com o Felipe, foi tudo muito rápido, nesse espírito de colagens de sons. Muito legal também foi o que veio depois: imprimiram um poema visual meu num corpo de uma mulher e no de um homem, como se fosse tatuado. E aquilo virou outdoor pela cidade.

Não lhe preocupa que um Arnaldo Antunes que, numa dessas áreas, não se expressasse tão bem, comprometa o Arnaldo Antunes das outras áreas?
É difícil dizer. Acho que tudo o que eu faço envolve o trabalho com a palavra. Seja na música – a palavra cantada –, seja na poesia visual, em vídeo. Então, a linguagem com que eu tenho mais afinidade acaba sendo a coisa do verbal. Mas sempre tendendo a outras mídias. A palavra contaminada por alguma outra linguagem. E eu sempre transformo a palavra em uma outra coisa – seja uma trilha pra dança, como fiz pro grupo corpo. Eu não me vejo fazendo música instrumental, assim como não me vejo sendo artista plástico.

A palavra é, então, seu porto seguro na hora de transitar por outras mídias?
Poderia ser entendido assim. Acho que a palavra é a linguagem que me levou para outras linguagens. É como se a música viesse da necessidade de entoar.

A inclusão de músicas suas em filmes [em "Bicho de Sete Cabeças" e "Benjamim"] tem rendido grandes resultados. Como esses filmes foram chegando a elas, já que elas existiam antes deles?
Em “Bicho...”, foram músicas minhas que já existiam e que a [diretora] Lais [Bodanzky] colocou no filme, e parece que elas foram feitas para ele, porque elas se integraram muito bem ali. Porque o Luís [Bolognesi], que é marido da Laís e é roteirista do filme, estava escutando muito o meu disco na hora de escrever o roteiro e aquilo foi entrando organicamente no filme. Mas isso ele saberia explicar melhor que eu... [rindo] Para o “Benjamim”, fiz uma regravação da música “Alegria”, que já aparecia no meu CD Ninguém. As trilhas que fiz especialmente foram uma gravação de “Bandeira Branca” para o filme “As Gêmeas”, do Andrucha, e a música tema de “Dois Perdidos numa Noite Suja”, do José Joffili.

Quando você saiu dos Titãs, músicas "de Arnaldo Antunes" continuaram a ser compostas pela banda. Não há nos seus discos, no entanto, nada que se pareça demais com os Titãs. Você concorda que a sua personalidade artística ainda rege, de alguma forma, parte das invenções atuais dos Titãs?
Eu acho que no meu trabalho tem alguma coisa que eu trouxe da influência dos Titãs e eu acho que eu deixei nos Titãs alguma coisa da minha experiência pessoal, afinal foram 10 anos de conjunto, um convívio muito intenso. Mas eu não saberia dizer se há mais disso aqui ou se há mais disso lá, porque eu não vejo tão claramente. Talvez muitas coisas que atribuíssem a mim nos Titãs podiam não ser tão minhas. Não sei. Eu acho que quando saí dos Titãs eu pude exercitar muito mais a minha diversidade, coisas que não cabiam naquele consenso de oito pessoas. Eu saí da banda pra isso. Pra ter mais liberdade de gravar minhas coisas.

No campo estritamente da poesia, você não tem feito tantas apresentações...
De vez em quando eu faço. Privilegio a coisa de fazer shows com minha banda, que é o que mais gosto de fazer. Faço muito mais isso fora do Brasil, porque tem muitos festivais que reúnem gente do mundo todo. Agora mesmo, em julho, vou fazer uma coisa assim num festival de poesia de Berlim. No Brasil, esse tipo de evento é mais raro. Além disso, não gosto de confundir as pessoas, que vão para um evento pensando que é um show e acabam tendo que ouvir poesia.

Um eterno companheiro de seus discos [e até de shows], Edgard Scandurra ralicalizou seu som em direção à música eletrônica. Essa sonoridade também te atrai?
Nos meus discos sempre tem alguma coisa do uso de eletrônica, mas é sempre misturado com alguma coisa acústica, trazendo para a linguagem da canção, que é a minha praia.

Você agora lança seu disco por conta própria, apenas com distribuição da gravadora. Isso é fundamental para um artista se encaixar no mercado de música dos anos 2000?
É uma alternativa. A indústria fonográfica está vivendo um momento de crise e está mudando muito o panorama de como o mercado se porta. E eu acho que uma forma saudável de relação entre músico e gravadora é isso: o artista tem o seu selo e trabalha com o know-how de divulgação e marketing da gravadora - que é bem interessante de poder contar. Tudo isso torna a relação mais legal. Meu contrato é assim: eu gravo o disco, entrego pronto para a gravadora e eles distribuem, trabalham parte da divulgação. Bancaram o videoclipe que eu fiz agora com a Monique Gardenberg. É uma parceria, mesmo. Vou fazer mais dois discos nesse mesmo esquema.

Como você lida com pirataria, kazaa, mp3 e com essa nova geração que, diferente da sua, não quer mais saber do álbum como um conceito fechado, mas só "pesca" músicas isoladas?
Disco pirata é muito preocupante, porque é uma coisa difícil das gravadoras competirem. Foi isso que roubou grande parte do mercado. Essa coisa de troca de músicas pela Internet não me preocupa. É como você trocava de disco com os amigos, antes, só que em grande escala. Mas já estão procurando meios para que haja comércio de música pela Internet e não só troca gratuita. Porque não se pode esquecer que têm que ser preservados os direitos autorais, é preciso pagar as pessoas envolvidas e ter de volta o retorno do investimento que foi feito no disco. Tem que pensar que aquilo é um objeto de consumo o qual, para continuar sendo produzido, precisa também ter retorno comercial. Senão, fica inviável.

E quanto à movimentação de músicas avulsas, desassociadas do conceito do álbum de onde elas vieram?
Tem um lado legal nisso: agiliza a produção e você não precisa vender um disco todo. A questão tem dois lados. Você perde um pouco o álbum como conceito. Você compra só uma faixa solta e isso tem um lado chato. Mas, ao mesmo tempo, tem o lado legal, porque você não precisa produzir um disco inteiro. Fez uma música, quer gravar, já grava, já põe na Internet e já está ali para as pessoas, o acesso é imediato. Restitui um pouco aquela coisa de compacto simples que tinha quando a gente era criança. Eu, nem como criador, nem como consumidor, não me apeguei a esse sistema. Sou muito apegado ao álbum, gosto do disco, mesmo. Eu gostava do tempo do LP, que era um pouco menor que do CD, gostava do Lado A e do Lado B...


[íntegra da entrevista publicada na revista Simples, em 2004]