Orelhadas sobre músicas, músicos e música

sexta-feira, 22 de julho de 2005

rosa passos [2003]


Que Saia Que Nada

por Marcus Preto

Rosa Passos já cansou de ser chamada de “João Gilberto de saia” e diz que isso só acontece no Brasil. Fã assumida do papa da bossa-nova, ela não nega a influência recebida de João, mas identifica outras muitas vertentes musicais permeando seu trabalho.

A baiana faz parte daquele grupo de artistas da música brasileira que, por questões de mercado, dirigiram suas carreiras para fora do seu [nosso] próprio país. Faz shows pelo mundo todo e tem alguns de seus discos lançados primeiro lá fora.
Me And My Heart, por exemplo, sai agora no mercado norte americano e só deve chegar ao Brasil no próximo ano.

Aqui, ela está lançando
Azul, disco todo dedicado a canções de Gilberto Gil, João Bosco e Djavan. Paralelamente aos shows de divulgação desse CD, a cantora faz um outro espetáculo, lendo à sua maneira o repertório de Elis Regina – que, aliás, também deve virar um disco em breve.

Você odeia quando te chamam de “João Gilberto de saia”?
Olha, primeiro eu acho que isso é uma responsabilidade muito grande, porque eu acho o João Gilberto um patrimônio da música brasileira, internacionalmente respeitado. É uma honra porque é meu ídolo, aprendi muita coisa com ele. Mas eu tenho outras referências como música, eu não fico só na bossa nova. Componho sambas-canções, boleros, faço pop, jazz. Fora do Brasil não me rotulam de cantora de bossa nova, acham que sou uma cantora de trabalho muito brasileiro, mas com conotação jazzística. Mas nunca ninguém me associou a João Gilberto no exterior.

Por que será que só aqui?
Porque isso foi uma coisa que ficou e, quando o artista já ganhou um rótulo, as pessoas não se preocupam em se aprofundar muito no trabalho, já chegam procurando o que o rótulo determina e não vêem o resto. Eu sou mesmo uma cantora intimista, mas tenho minhas características próprias. Meu disco atual, Azul, não tem nada a ver com a coisa do João. Nem o show [com canções] da Elis, que é uma coisa muito mais intensa. Fazer Elis é um desafio, pois ela é definitiva em suas interpretações. Então, você vê que existe uma versatilidade, não é só aquela coisa de cantar baixinho da bossa nova.

É verdade aquela história que você teria ido à casa de João Gilberto e tocado, a pedido dele, a mesma música tantas vezes que chegou a desmaiar?
Isso é uma coisa só tão minha e dele... O que preserva minha amizade com João Gilberto é exatamente essa coisa discreta que eu tenho em relação a ele. Principalmente porque ele é meu ídolo, uma referência. João acompanha meu trabalho: eu sempre mando meus discos pra ele de presente, que demonstra interesse no que estou fazendo. Então, falar dessa coisa minha com João, isso eu não gostaria.

Agora você se apresenta cantando repertório lançado por Elis Regina. O que você fez para driblar as “interpretações definitivas” dela, como você mesma definiu?
Em Minas Gerais, um crítico me chamou de “a nova Elis”. Não que eu tivesse querendo ser a Elis, mas o contrário: sou eu dando a força do meu trabalho pras músicas que ela cantou. Eu sou muito feliz com minhas interpretações dessas músicas, dei uma nova roupagem, fiz do meu jeito. Uma forma inteligente de você cantar e não querer ser alguém, buscar seu próprio espaço. Então, isso vai me distanciando inclusive do “João Gilberto de saia”, né?

A Elis era “tudo” mesmo?
Era “tudo”, sempre. Cantora brasileira, pra mim, era Elis. Gosto também de outras cantoras, como Elizeth Cardoso, que deixou um grande legado, Dalva de Oliveira, Ângela Maria, Clara Nunes... Mas Elis tinha um pouco de todas elas, e era uma só. E tinha aquilo de descobrir compositores novos, apostar neles e gravar as músicas deles. Não tinha medo de encarar um samba, entrar no palco quebrando tudo junto com os músicos. A música popular brasileira está passando por uma fase muito difícil há muito tempo.

Em que sentido?
Todo mundo coloca tudo muito pop, pop, pop e os sambas estão pra trás. Os sambas-canções, as músicas com dinâmica, com sutileza, isso não tem quase. As meninas cantoras estão usando muito vibrato na voz, aquela coisa muito americanizada.

Você gosta de alguém especialmente nessa nova safra?
Estou encantadíssima com Maria Rita, a filha da Elis. Ela tem uma responsabilidade, porque tem a coisa da mãe dela, mas não deixa isso atrapalhar. Ela é ela e vai longe, se não perder esse fio da meada. Tem que dar continuação a isso que, de certa forma, parou. E hoje eu faço sozinha, eu acho. Eu tô sozinha, me sinto sozinha nessa coisa da música brasileira, de fazer uns sambas de Baden Powell, ou mesmo de Gil. Se há alguém mais fazendo isso, eu não tenho acesso, porque não tenho visto. Porque as cantoras mais jovens têm uma conotação mais POP no trabalho. Não vejo alguém caindo de frente nessa coisa do samba.

É por isso que você tem feito mais discos de intérprete do que gravado suas próprias composições?
Eu gosto muito de garimpar essas canções de cantores brasileiros que eu gosto. Eu tenho muitas composições, um acervo grande, daria pra fazer discos de composições só minhas. E pretendo gravar também outros compositores novos, estou curtindo muito um compositor baiano chamado Alexandre Leão, maravilhoso, quero gravar músicas dele. Penso em fazer isso, mas não tenho essa pressa. Mas, se gravo músicas conhecidas, é porque gosto de dar minha versão a elas. Queria gravar um com músicas de Edu [Lobo], de Chico [Buarque], Ivan [Lins] e Vitor [Martins], tem muita coisa boa. É vontade de fazer música com compromisso só com a música, pra tocar no coração das pessoas.

Você faz mais shows no exterior do que por aqui. Por que isso?
Meu trabalho é mais lá fora. Todo ano, no período de junho a agosto, participo dos festivais de Jazz na Europa: Escandinávia, Espanha, Alemanha, Suíça... Fiz agora no Lincoln Center, Estados Unidos, o Tributo à Elis Regina, dividi o palco com Leila Pinheiro, 6.000 pessoas, foi maravilhoso.

E que público vai assistir? São brasileiros?
Não, são estrangeiros mesmo. E japoneses, já fui pro Japão cinco vezes. De dois em dois anos eu faço show lá. E é também sempre público japonês mesmo.

Qual é a diferença entre o público japonês e o brasileiro?
O público japonês é muito silencioso, ele assiste tudo com muita calma, mas quando ele gosta, ele aplaude muito. E, quando eles não gostam, eles nunca voltam ali. Porque são fãs super fiéis: eles vão me assistir e levam, como prova que estiveram no show passado, uma coisa autografada, um CD... Eles têm um cuidado muito grande com a troca de afeto que existe entre o artista e eles. Querem dar presente pra gente, é super interessante.

O que você já ganhou?
Já ganhei um microfone, uma bolsa chiquésima, muitas flores, bombons, sempre querem me agradar. Uma vez, um fã queria me dar um colar de pérolas, mas eu falei: “Não, não precisa não...”, não dava pra aceitar, né? Mas é muito gostoso.

Por que você decidiu juntar esses Gilberto Gil, Djavan e João Bosco num mesmo disco?
Essa coisa do Azul é porque eu adoro esses três compositores contemporâneos. Eu queria fazer um disco só com Djavan, principalmente a fase dos sambas. Mas como eu já vinha cantando João Bosco e Gil nos shows da Elis, muita gente começou a pedir.

Acho que você se deu especialmente melhor nas canções do Gil, elas parecem suas, até.
Porque praticamente só Gil gravou “Mancada”. “Mar de Copacabana” tem uma versão de Leny Andrade, mas já é muito antiga. Foram achados.

Você gosta de cantoras mais emocionais, como Maria Bethânia, por exemplo?
Eu gosto muito de Gal [Costa], ela é muito afinada. Bethânia é diferente, é uma cantora-atriz. No palco, não tem pra ninguém. Elas são referências, também. A Nana Caymmi também é assim, intensa. Mas eu me identifico mais com Elis.

Você se considera uma cantora técnica?
Eu canto muito com o coração. Mas me controlo, pra não me perder, praquilo não virar um drama.

Esse controle é a técnica, então?
Eu sou uma pessoa muito abençoada por Deus, musicalmente. Porque vim com o dom da música por inteiro: eu componho, eu faço arranjos, eu canto, eu toco. Então, quando eu vou cantar uma música que não é minha, a responsabilidade é até maior, principalmente quando muita gente já cantou. Tenho preocupação de dar minha interpretação muito pessoal, me preocupo com a estética da música, com a dinâmica, com o belo. E, exatamente por eu me interessar em fazer uma coisa de uma forma muito minha, eu tenho facilidade que a coisa venha de uma forma diferente.

Como você faz?
Eu pego a música e vou destacando, destacando, até achar que aquele é uma caminho diferente que eu posso colaborar dentro do lado interpretativo. Eu pego meu instrumento e digo: 'Me ajude, meu pai, como é que eu vou cantar agora “Águas de Março” diferente de todo mundo?' Aí, me concentro naquilo e recebo uma inspiração de Deus, e sempre consigo sair por um caminho diferente. Eu sou Kardecista e acredito no auxílio da espiritualidade. Quando você está bem intencionada, aquilo vem em seu favor. E, quando eu gravo um disco, é uma coisa muito séria. Aquilo é um registro pro resto da vida e eu vou querer que todas as pessoas sempre tenham vontade de ouvir meu CD.

[entrevista originalmente publicada no MPBol, em 2003]