Orelhadas sobre músicas, músicos e música

sexta-feira, 22 de julho de 2005

sérgio dias [2003]


O Homem da Guitarra de Ouro

por Marcus Preto



O cara é uma lenda viva. Guitarrista da banda mais importante que o nosso país já teve, Sérgio Dias está lançando agora um CD gravado ao vivo no Jazz Mania, em 1986, onde apresentou repertório completamente diferente do rock que fez nos Mutantes. A edição é limitada, só 2500 cópias.

Mas é impossível falar com Sérgio e não querer saber dos Mutantes, do que ele se lembra, do que ele guarda daquele tempo em que os discos eram canais revolucionários e a música, uma arma indispensável.


O disco que você lança agora é material gravado em 1986 e estava praticamente esquecido num canto. Você ainda tem material inédito dos Mutantes? Pretende lançar também?
Não depende de mim. Eu tenho uma pilha de CDs gravados com informação tirada de outra pilha de fitas antigas. Tenho áudio da gente tocando na Hebe Camargo ao vivo, os ensaios do disco O A e o Z, o Tim Maia mostrando música pra gente. Tem coisas geniais.

De quem depende?
Dos artistas envolvidos. Rita, Arnaldo, eu... Isso um dia vai vir à tona, mas eu não vou correr atrás como se fosse meu projeto de vida. Quem sabe um dia eu leilôo tudo isso? Fica mais fácil. Não tenho que me envolver com Arnaldo, e Rita, e liberações, e milhões de dólares... Isso é muito complicado, ainda tenho muita música pra fazer.

O que significa “não tenho que me envolver com Arnaldo e Rita”? Vocês não se falam nunca?
Existe uma relação. Como vocês [os fãs, a imprensa] querem muito que a gente se relacione mais do que a gente se relaciona, vocês acabam criando um mito que até atrapalha. Porque gera na cabeça da Rita, ou na minha, ou na do Arnaldo, um grilo que nem existe. Tenho imenso amor e respeito pelos dois. As dificuldades de cada um são completamente irrelevantes a um momento de necessidade. Tenho certeza que se eu ligar pra Rita e disser que tô mal, ela vem de onde diabo ela tiver. Se ela não vier, eu vou desmontar, não vou acreditar. Porque eu faria por ela, e já fiz. O Arnaldo, idem. Somos uma família com problemas... pequenos. O que aconteceu? O Arnaldo e a Rita brigaram quando foram namorados e acabou, foi só isso. Inventam muita história, bicho! Muita gente se mete nisso! Já parei pra pensar, revi os fatos e vi que não existe nada que possa significar uma ruptura concreta.

Primeiro saiu a Rita, depois o Arnaldo e você continuou com os Mutantes, sozinho, até onde deu. Quando você percebeu que era hora de parar?
Você está voando, é um avião. Pára uma turbina, você cai? Não. Você vôa, você é um avião. Só que tem uma hora que você vai ter que pousar, se o avião não tá mais respondendo da maneira como você espera. É hora de pensar em outra maneira de locomoção.

A partir daí, você fez mais coisas fora do país do que por aqui, chegando a morar por bastante tempo nos Estados Unidos. Ver o Brasil de fora para dentro te fez entender muita coisa?
Nossa... Uma coisa que eu estou a fim de fazer são palestras sobre o golpe de 64, pela facilidade com que as grandes potências subjugaram a nós, da América Latina. A conseqüência maior disso é esse grande hiato na nossa cultura. Quero questionar umas coisas: por que se tem a impressão que as bandas antigas eram melhores? Por que o cara usa camiseta do Che Guevara e não do Lamarca? O que o Guevara fez aqui? Porra nenhuma! Lamarca morreu aqui. Esse deu o sangue! Eu vi e vivi tudo isso. E isso não tá no currículo escolar. A vida me levou a pontos absurdos! Se eu te falar que conversei com Ted Kennedy dentro do iate dele sobre política, você não vai acreditar. Ele me disse, acho que em 1984: “Aquele cara dos metalúrgicos, o Lula, não vai emplacar nunca!”. Ele tava certo: aquele cara eu não vi emplacar, não. Tô vendo um outro cara aí, bem diferente daquele metalúrgico.

Vocês sofreram um bocado com a censura, não? Do que você se lembra?
“O meu cabelo é verde, amarelo, violeta e transparente” [trecho da música “A Hora e a Vez do Cabelo Crescer”]. Não podia falar “verde, amarelo”, a gente botava um ruído encima. Mas não mudava a letra, a gente preferia mutilar que alterar. Pra que ficasse patente pra história que quem fez aquela merda foram eles, não fomos nós. Éramos politizados e nem tínhamos muita noção disso.

E hoje, quem são os herdeiros do espírito transgressor dos Mutantes? O que você tem visto na música do Brasil que faça jus a essa escola?
Tô vendo um monte de coisa acontecendo fora do eixo Rio-São Paulo, o que é ótimo. Gente de Curitiba, do Paraná, de Goiânia, Brasília, Minas Gerais... Acabei de produzir o Nem, que é de Goiânia, acabei de produzir o Black Maria, que é de Curitiba, talvez o Íris de Seda entre agora, de Minas Gerais. É gente muito legal e com atitude correta. Tô vendo nêgo botar a batera num ônibus e encarar desde Rio Grande do Sul até Goiânia pra tocar num festival e não ganhar nada. Genial! Rock survives! Eu já vi isso antes, mas já fazia muito tempo que só via nêgo perguntando: “Escuta, cadê a água no camarim?”.


[entrevista publicada na revista Transamérica, em 2003]