Orelhadas sobre músicas, músicos e música

sexta-feira, 22 de julho de 2005

jair rodrigues [2003]



Jairzão levanta até defunto

por Marcus Preto

O cantor mais extrovertido da MPB lança Intérprete, seu 41º álbum em quase 40 anos de carreira.

Jair Rodrigues está de volta, firme e forte. Produzido pelo filho Jair Oliveira, ele lança agora, aos 63 anos, o 41º álbum de sua carreira fértil, através da qual defendeu, à sua maneira, o samba, o samba-canção, a seresta, a MPB, tudo o que pôde. Isso sem falar no mérito de ser considerado o pai do rap no Brasil, desde quando cantou “Deixa Isso Pra Lá”, em 1964. Sempre com um sorriso no rosto, com ele não tem tempo ruim nem em cemitério.

Agora é o filho que manda no pai?
Esse é o segundo trabalho que o Jairzinho faz como produtor. Ele se formou músico e engenheiro de som nos Estados Unidos e, quando voltou estava encontrando uma dificuldade de trabalhar aqui. Aí, em 1999, gravei 500 Anos de Folia e o chamei pra trabalhar comigo, ele precisava de uma chance, de alguém que acreditasse nele. Deu tudo certo e, quando fui gravar esse novo, quis ele produzindo outra vez.

Você convidou Lobão pra participar de seu disco, ele que anda mal querido das gravadoras. O que você pensa das polêmicas que ele vem levantando?
Eu não conhecia essas coisas de numeração de disco. A primeira vez que alguém tentou falar disso foi o Juca Chaves. E tomou uma paulada na moleira que até hoje ele sente. Deram uma prejudicada nele, as gravadoras todas foram contra. E agora, ouvindo o Lobão falar, acho ele superinteressante. Mas agora até as gravadoras estão junto na nossa batalha de numerar os discos, e por quê? Porque é preciso colocar uma pedra no caminho da pirataria. Não vamos conseguir acabar com ela, mas ela vai amenizar, com certeza. Mas chamei o Lobão pro disco porque ele é um cara super legal, ele tem o lado ritmista, o lado do samba. Quando Jairzinho convidou a resposta foi: “Puxa, já gravei com Nélson Gonçalves, com Elza Soares... só faltava o teu paizão!”. No estúdio, em 15 minutos, tava pronta a gravação.

Você é mesmo o pai do rap no Brasil?
Em 1989, eu estava fazendo um trabalho no Festival de Montreaux, na Suíça, e encontrei os Paralamas do Sucesso no avião. O Herbert Vianna falou: “Sabia, moçada, que o Jair Rodrigues é o precursor do rap?”. Eu falei: “Ah, sou? Então divulga isso que eu tô no lucro!”. O líder dos Racionais, quando foi lá em casa no ano passado participar de um futebolzinho e um churrasco, falou também que o precursor dessa onda aí sou eu. Então, beleza.

Como ficou sua relação com Elis depois dos tempos da TV Record?
Ah, sempre, sempre... Tinha gente que dizia que éramos namorados, era uma união muito grande.

Nunca rolou nem um beijinho?
Só aquele beijinho no rosto, aqueles abraços demorados, mas a gente percebia que era de irmão pra irmão. Tudo ali era amizade. Quando aquela programação da Record saiu do ar, os dois já com carreira solo, nos encontrávamos e era aquela alegria toda. Quando ela faltou eu comecei a cantar, em todos os meus shows, aquele pout-pouri do 2 na Bossa, faço minha homenagem. Nesse disco, gravei “Arrastão”, mas é duro encontrar um espaço pra fazer alguma coisa diferente nas músicas que ela já cantou. Se eu fosse uma cantora, seria pior ainda. Como sou um homem, tudo bem. Aí, por coincidência, o César Camargo Mariano entrou no estúdio naquele mesmo dia e fez o piano. Gravamos “Arrastão” e “Saudosa Maloca”, mas escolhemos a primeira.

Ela era difícil mesmo?
Eu era uma espécie de conselheiro dela. Sempre fui extrovertido e brincalhão. Ao olhar pra ela eu já percebia se ela estava, ou ia ficar, ou já tinha passado por um problema. Ela tinha muitos problemas em família, pois saiu de Porto Alegre, da barra da saia da mãe, veio sozinha, pintava aquela solidão. Então, por não ter muito com quem conversar, carregava aquilo dentro dela. Aí, qualquer coisinha aquilo explodia. Às vezes, uma fã queria se aproximar dela [o mesmo que eu faço com Luciana hoje, eu fazia com Elis], eu dizia: “Elis, aquela moça parece que quer falar com você, mas tá com medo”. Aí ela vinha, dava autógrafo. Mas se você não fosse amigo dela ou amigo do amigo dela, você não se aproximava não. Nem tentasse que levava uma desilusão muito grande.

Quando, nesses anos todos de música, você olhou em torno e disse: “tem alguma coisa nova acontecendo por aqui”?
Vi uma mudança acontecendo pra pior, nos anos 80. Teve a lambada, o axé, o sertanejo, o pagode. Muita gente ruim pegou carona no sucesso desses gêneros. Aí infestou o mercado de porcaria e qualquer um gravava. Depois, quem era ruim acabou caindo fora e os que ficaram foram os que tinham alguma coisa pra dizer. Ficaram poucos.

O que você fez pra passar por essa fase?
Eu fui pelo lado oposto. Eu disse: não vou fazer isso que andam fazendo, eu conheço outro caminho que posso percorrer. Gravei discos de serestas, com músicas antigas. Eu sei fazer isso bem, então lancei primeiro Antologia da Seresta, em 1979, depois, outro volume em 1981 e Carinhoso, em 83. Agora, com essa nova safra de músicos, compositores, interprétes, já tá ficando tudo bom novamente.

Quais os três discos seus que você considera importante que sejam conhecidos por essa nova geração?
Vou dizer a você. O primeiro Dois na Bossa, feito em 1965, com Elis. Um disco que fiz em 66, O Sorriso do Jair, que inclui “Disparada”. E um disco que fiz em 1998, pela Som Livre, chamado Jair de Todas as Bossas, era um projeto maravilhoso. Esses três. Esse meu mais recente eu classifico entre os 10 mais de minha preferência, entre meus 41.

Seu filho anda compondo feito louco. Você sente falta de ter sido mais compositor do que você foi?
Eu sou bom melodista, mas preciso de letrista. Fiz música com Wando, Carlos Odilon, Benito de Paula e com Gilson de Souza. Eu fazia as músicas, eles botavam as letras. Mas não tenho essa queda pra compositor.

Então, quem você elegeria o SEU compositor?
Com certeza, a dupla Ewaldo Gouveia e Jair Amorim. “Rancho da Saudade”, “Mestre-Sala do Amor”, “Até Quando”, “Perdão Portela”, “Bloco da Solidão”, tudo o que eu gravei deles se tornou clássico.

Quem, em 2002, ainda carrega dignamente a bandeira do samba?
Embora ele passe tanto tempo sem gravar, quem segura essa bandeira ainda é Paulinho da Viola. E o Martinho da Vila. Ou esse menino, Dudu Nobre, que tá começando agora mas tem uma propriedade muito boa. E Zeca Pagodinho, que eu acho que, pra se consagrar definitivamente, ainda precisa de maturidade. Qual é o brasileiro que não gosta de uma boa caipirinha, de um melzinho, de uma cervejinha? Agora, o que você não pode é propagar isso. Ele tem que esconder esse lado particular, guardar isso pra ele. Ninguém tem que saber se o cara cheira pó, queima fumo ou bebe. O lado musical é um lado muito perigoso. Se você mostrar um lado musical bom, tem que mostrar isso sempre. E se você mostrar o lado do cigarro, da bebida, vai sempre encontrar gente que diga: “gostava tanto desse cara, mas sei lá, ele bebe...”. Porque, na maioria das vezes, as pessoas não conseguem separar as duas coisas.

Antigamente todo mundo na música brasileira gravava um ou dois discos por ano. Hoje isso não existe mais. Por quê?
Antigamente o disco desgastava mais. Todas as faixas dele ficavam conhecidas quase que da noite pro dia. O rádio não malhava só a faixa de trabalho. Tocava aquela e mais umas sete ou oito. Seis meses depois, o próprio lojista ligava pra gravadora dizendo: “Quando sai outro disco do Jair? Esse aqui já não tá mais vendendo não, faz outro aí!”. Éramos obrigados a fazer discos de seis em seis meses. Agora fica só naquela faixa, massificando, sendo que há outras cinco tão boas quanto. Aí, aquela faixa enjoa e não toca mais o disco, por isso não vende. Já cheguei a ter músicas de 4 ou 5 discos na parada ao mesmo tempo.

Tempo bom...
Pois é. Acontecia do disco de tal fulano estar encalhado. Então, pra desencalhar, armavam de fazer o programa do Chacrinha, por exemplo. No outro dia, todo mundo saía pras lojas pra comprar o disco. A gente fazia muita coisa.

O que faltou fazer nesses anos todos?
Acho que nada. Eu sempre fui pau pra qualquer obra. Inclusive aqui [na gravadora Trama] eu sou exemplo pra essa molecada. Porque eles não gostam muito de trabalhar o disco não. Aí eu falo: “Porra, vocês mal começaram, já estão cansados!”. Enquanto Deus me der vida e força pra continuar cantando, quero servir de exemplo. Pra garotada e pra muitos da minha época, que reclamam que não encontraram mais espaço na mídia. Eu acho que não é bem assim. Acho que eles se acomodaram e deitaram com o burro na sombra. Mas não pode ser assim. Quem tá aí vivo, com talento pra mostrar, tem que mostrar sempre. Porque cada vez que esses bons artistas deixam de lançar um disco, aparece um monte de porcaria no lugar. Por isso que eu gosto de dar um tapa na rapaziada, uma chacoalhada. Comigo não tem tempo ruim.

Esse seu “tempo bom” permanente já te colocou em alguma enrascada?
Ouça isso. Ligou um pessoal lá pra casa há uns dois anos, me contratando pra um show em Santos. Quando chegou o contrato, minha mulher leu pra mim: era um show num cemitério. Pensei: “Vou cantar pra defunto, pô? Ah, vamos lá ver”. Chegando lá, o palco estava montado diante das campas, quase dentro daquele lugar onde o pessoal vela os mortos. A mulher contratante explicou: “Aqui é um cemitério particular só das famílias desse pessoal, é como se fosse um condomínio. E os familiares falecidos eram todos seus fãs, isso será uma homenagem que você fará a eles”. E me pediu que eu evitasse contar piadas e falar bobagens, essas coisas. Eu comecei assim, comportado. Mas, de repente, chegaram os papéis: “Jair, conta aquela piada que meu avô que está morto aqui gostava muito; canta aquela música pro meu falecido marido, uma que tem aquela sacanagem ‘você vai dar o rabo, você vai dar o rabo’”. A contratante me olhava feio e eu dizia: “tão me pedindo aqui”. Já tinha imaginado tudo nessa vida, menos que um dia iria fazer show em cemitério.

[entrevista publicada no site da Som Livre, em 2003]