Orelhadas sobre músicas, músicos e música

segunda-feira, 25 de julho de 2005

edgard scandurra [2003]


ira eletrônica
por Marcus Preto


Edgard Scandurra agora se chama Benzina. Ao menos sua metade eletrônica. É assim que ele assina Dream POP, seu recém-lançado disco nessa seara e o projeto de live p.as. com que anda viajando os clubes e raves do Brasil. Benzina já era o nome de seu álbum solo anterior, onde iniciou as experimentações como produtor eletrônico radicalizadas neste novo álbum. Ele próprio diz não saber definir exatamente o tipo de som que faz, mas considera que seu trabalho deve ajudar a criar um respeito pela música eletrônica feita no Brasil, ainda não devidamente valorizada.
A metade rock’n’roll de Edgard continua ativa. Guitarrista e peça-chave do Ira! há 22 anos, o roqueiro não teve que sair de cena para que o dj aparecesse. A banda continua fazendo shows e deve gravar novo disco – de rock – no começo do próximo ano.
Que as duas metades convivam em paz.

Esse é seu terceiro disco solo. Existe uma linha evolutiva clara entre eles?
Acho que não. Eu vejo cada disco refletindo uma época. Amigos Invisíveis era mais voltado ao músico orgânico, eu tocava todos os instrumentos, as músicas são cantadas. Benzina, quase 10 anos depois, é um disco mais híbrido, já é reflexo da minha descoberta da música eletrônica. A princípio, ele ia ser uma coisa mais experimental, fugindo do guitarra-baixo-bateria, mas meu contato com Suba, com o Hell’s, com Mau Mau me levou pra eletrônica. O último agora tem os dois pés na pista, é assumidamente eletrônico, dançante. Cada um conta um momento da minha vida.

Momento só musical ou momento pessoal, também?
Musical, sempre acompanhado de pessoal. O primeiro disco era um contraponto ao Psicoacústica, álbum do Ira! que a gente tinha acabado de fazer e que tinha me deixado inseguro porque quase não tinha guitarras - era poesia, rap e um dj. Então, eu senti necessidade de mostrar como é importante o cara ser músico. Pra isso, fiz um disco onde tocava todos os instrumentos, até uns que eu nem sabia tocar. O Benzina vinha de uma separação de um relacionamento com uma dançarina de flamenco. Nesse namoro, eu fiquei muito influenciado pela música espanhola, árabe. Minha vida tava dando uma guinada pra outros rumos. Eu estava prestes a me casar com ela, ia sair do Ira! pra dar aula de violão em Curitiba. Hoje eu vejo que isso ia ser uma tremenda roubada. Uma, porque eu abandonaria minha carreira de músico. Outra, que ia me separar dos meus filhos, morando numa outra cidade. A gente terminou o namoro na Espanha. Quando voltei pra São Paulo, eu estava solteiro e livre. Foi aí que caí na música eletrônica, no Hell’s, nas festas. Depois dos 30 anos foi que comecei a levar uma vida mais boêmia. Ali eu fechei uma página, daquela música acústica, uma coisa mais purista, de virtuose.

E seu disco atual é um aprimoramento disso.
Saindo desse momento acústico, conhecendo um outro universo, encontrando caras não-músicos que faziam música, só que com uma forte dose lisérgica, de psicodelia, coisas que eu gosto em música. Sempre busquei fazer isso na minha música e encontrei novamente uma possibilidade disso acontecer usando os elementos eletrônicos, a tecnologia.

Você, um autodidata, falou de não-músicos que fazem música. Acha que a “tosquice” do não-músico faz muita falta na música?
Claro, é fundamental! O punk-rock foi importantíssimo por causa disso.

Então você, caindo na música eletrônica, estava voltando de alguma forma a ser não-músico?
De certa forma, sim. Eu era um não-produtor dentro de uma música feita por produtores. Estava resgatando uma coisa de dar a cara pra bater numa praia onde eu não dominava tanto. Por outro lado, eu me sentia com uma certa vantagem sobre os outros caras por ser músico, por ter não sei quantos anos de guitarra.

O público da noite não apresentou um certo preconceito do tipo: “o que esse roqueiro está fazendo aqui?”?
Não. Principalmente depois dessa coisa de electro, com todo mundo se voltando pros anos 80, até os clubbers mais ortodoxos começam a se lembrar que gostavam de rock. As pessoas do rock é que têm mais preconceito com música eletrônica. Eles se sentem inseguros, ainda.

Os roqueiros reclamam com você, sentem-se traídos?
Já reclamaram bem mais. Acho que consegui o que achava ser impossível. Esse ano, eu fiz um show com o Ira! no Casebre, pra 1500 camisas pretas. Acabou o show, entrei numa van e fui tocar no Suzi em Transe pra 80 clubbers. Essa trajetória teve um significado simbólico: eu consegui ter as portas abertas nessas duas praias. Acho que só consegui isso porque fiz esse caminho através do underground, que é um ponto comum entre essas duas cenas.

O roqueiro ou o dj, qual dos dois te dá mais prazer?
O prazer é diferente. Uma coisa é fazer uma música que as pessoas vão cantar e ficar te observando, outra é fazer música pras pessoas dançarem. A pista tá bombando, as pessoas não ficam olhando o que está acontecendo no palco, na ação, no cenário. Na música eletrônica, a interação com a platéia é maior, mais desencanada, não é um momento espetáculo. Isso é mais o meu ideal. É uma coisa meio romântica as pessoas estarem lá pela música em si, não pelo artista.

É melhor tocar em rave ou em clube?
Meu deslumbramento com rave passou um pouco. Tanto em rock quanto como dj, acho que o melhor é tocar, no máximo, a um metro e meio das pessoas. Raves fazem você ficar muito afastado. Gosto mais da proximidade que os clubes permitem.

Você percebe certa ingenuidade deslumbrada por parte do público de música eletrônica em relação aos djs que vêm de fora tocar aqui?
Acho, sim. É que música eletrônica é uma coisa que veio de fora pra dentro e começou de uma forma elitizada, quem tinha acesso a ela já tinha viajado pra Europa, Estados Unidos. E esse “elitizada” acabou virando um pouco “colonizada”, também. Então, vêm uns caras de fora que acham que aqui ninguém entende nada e tocam só flashback, coisas que os djs daqui até já param de tocar. Não é sempre isso, mas rola. Mas eu nem critico o deslumbramento, não. Acho que as pessoas ainda estão descobrindo, então ainda têm esse deslumbramento. Mas trabalhos brasileiros vão pintando. Meu disco pode dar uma força nisso, provando que aqui também tem uma música legal. A gente tem o Marky, o Patife, o Mau Mau, Renato Lopes... eles são muito bons. Acho que vão ajudar a fazer crescer o senso crítico das pessoas em relação ao que chega aqui. “O cara é inglês, e daí?”.

Você é o principal compositor do Ira! e não está à frente da banda porque não quer. E por que não quer?
Só tocando, eu posso tocar melhor. Led Zeppelin e The Who, que são as bandas que eu mais admiro do rock, são bandas onde os guitarristas são os responsáveis pela sonoridade da banda mas não são band leaders. Como fã, acabei pegando essa veia e levando isso pro Ira!: o Nasi cantor, eu compositor e instrumentista. Não passo de um fã.

Você tinha preconceito com música eletrônica?
Sempre gostei de Kraftwerk, London Beach, Technotronic, New Order… Quando me falaram que tinha um afterhour que começava às 5 da manhã, eu pensava: “O que esses caras ficam lá ouvindo poperô às 5 da manhã?”. Eu não sabia nem de êxtase, nem dessa coisa mais lisérgica, da viagem.

O Ira! tem ciúme do guitarrista deles lá na outra praia?
Um pouco eles têm, sim. Mas já acostumaram. No íntimo deles, acham isso uma coisa menor. Nunca abriram isso, mas é uma sensação que eu tenho. Fazer essa música sem letra não soa importante pra uma banda de rock que tem todos aqueles “hinos”, como “Dias de Luta” e “Envelheço na Cidade”.

Esse ciúme não gera no Ira! uma possível resistência a que você coloque elementos eletrônicos num disco da banda? Não rola algo do tipo: “Lá vem o Edgard querendo botar o disco solo dele dentro da nossa música...”?
Acho que não. Já fiz discos bem eletrônicos com o Ira! Você Não Sabe Quem Eu Sou é bem eletrônico. Você pode tocar e perguntar: “Adivinha de quem é essa música?”. Nunca vão descobrir. Mas o público sim, teve uma reação muito forte. Na época do lançamento, a gente tomou latada, vaia. Quando soltava a bateria eletrônica, neguinho virava de costas, ia embora, fazia coro: “rock’n’roll! rock’n’roll!”. Foi punk. Tinha cara que ficava ajoelhado, gritando: “Edgard, pelo amor de Deus, não faz isso!”. Parecia que eu tava matando a mãe dele. O último disco do Ira! é um reencontro da poeira baixada da música eletrônica com as possibilidades de fazer um bom rock, ainda. O que eu acho interessante na música eletrônica? Esse poder viajante e de timbres instigantes. E isso é possível no rock, e foi abandonado.

O rock estava chato?
Desde o punk-rock, eu não via nada muito legal. O rock tava virando a página. Era a repetição da repetição da repetição. O Nirvana foi a última banda que emocionou. Então, eu conheci a música eletrônica. E não é que eu gostei, eu fiquei APAIXONADO por aquilo, envolvido dos pés à cabeça, não tinha pra mais ninguém.

Você falou dos “hinos” do Ira! e “Pobre Paulista”, uma das músicas mais pedidas em shows, é sempre acusada de ter letra nazista. Ela é?
“Pobre Paulista” é um punk rock inspirado nas músicas dos Sex Pistols, que tinham como características versos contundentes. Eu, como adolescente na época, achava que criticar o poder que existia à minha volta com palavras pesadas como "ódio mortal" seria algo bem punk. Então eu peguei os poderes que me reprimiam, como alguns professores, meus pais e os políticos e usei metáforas, como “gente feia”, “ignorantes”. Enfim, dei espaço pra interpretações duvidosas que questionavam se a letra era ou não preconceituosa. Mas a verdade é que eu nunca quis me referir a pessoas de outras raças e procedências. A feiúra a que me refiro na letra é interna, no espírito. A ignorância que cito é de pessoas "cultas" que não entendem os anseios de um jovem e nem de um homem humilde e semi-analfabeto. Quis fazer uma letra punk, bem agressiva e contundente. E, pelo visto, consegui.

E o contraponto disso é “Marilu”, que você fez e o Ultraje à Rigor gravou?
Eu nem tocava mais no Ultraje quando ela foi lançada. A característica da banda era o humor. A gente se juntava e virava um bando de moleque. E essa música começou assim, numa piada com um monte de banda de ska que existia na época. Foi feita de brincadeira. E por muitos anos acabou sendo um dos meus maiores direitos autorais. Nunca imaginei que por causa de uma letra tão infantil e tão boba eu iria me sustentar.


outros perguntam outras perguntas

Você já disse que não gostava de estar à frente da banda porque não compactuava com o conceito do “rockstar”. Mas esse conceito está sendo transportado para a música eletrônica, com a atual glamourização do dj. Você está preparado para virar star? [Érika Brandão, diretora do programa AMP, na MTV]
Acho que sim. Eu faço música pro meu prazer. Se as pessoas vão achar que sou popstar ou cara humilde, se sou um cara modesto ou se me escondo atrás de alguém, isso não me importa muito. Eu não quero que minha ideologia me atrapalhe. Não quero ser atrapalhado pelo meu ideal de não ser um popstar, mas faço o possível pra que isso não aconteça. Minha vida é completamente normal. Eu não conheço nenhum popstar que ande de metrô. Eu ando.

Por que você não deixa as cantoras dançarem no seu show? [Taciana Barros, cantora e ex-mulher de Edgard]
Quando eu estava passando o som no D-Edge, para o lançamento do disco, as meninas todas ficavam dançando. E eu pedi pra elas não dançarem muito durante as músicas porque passa uma certa fragilidade para as pessoas da platéia. Se elas ficassem mais introspectivas, passaria mais emoção pra platéia. Mostrava uma interpretação.

Tu não acha que o preconceito quanto a estilo ainda é um grande problema para sentir melhor a música como um todo? Ou a pessoa gosta de eletrônico ou gosta de rock ou gosta de pagode... Poucos são os que deixam a música bater e sentir, não acha? [Flu, cantor]
Flu, o preconceito já era. Azar dos caras que fazem cara feia para as experiências musicais e para os estilos que podem muito bem ser misturados, dando uma cara a um novo som. Pra eles existe a mesmice.

Mercenárias, Maluf 111 ou Cabine C ? [Charles Gavin, baterista dos Titãs, ex baterista do Ira!]
Mercenárias. Maluf 111 não saiu do papel, era a época em que o Maluf se candidatou a deputado com o número 111. Eu na batera.

Religioso, visionário ou charlatão? [Ciro Pessoa, vocal e guitarra do Cabine C]
Visionário. Eu tenho uma coisa de sonhar com os ideais e procuro atingir isso. Acho que tô mais pra visionário que pra charlatão.

Você trabalha com música eletrônica há já sete anos, pelo menos. Não acha um pouco artificial seu trabalho ser repentinamente rotulado de 'electro'? [Pedro Alexandre Sanches, crítico de música da Folha de S. Paulo]
Pode ser um pouco artificial porque eu não acho que é totalmente electro. Mas como eu nunca soube definir muito o tipo de som que faço e – isso é um defeito – é muito importante pros caras saber que tipo de som você faz, eu fico até feliz quando alguém fala do “electro do Edgard”. Eu nunca segui um tipo de linha, nunca fui fiel ao tecno, ao house, nada disso. Tem realmente alguns electros no disco, mas se a pessoa fizer uma avaliação superficial, vais ser uma sacanagem com esse meu trabalho, vai parecer que eu peguei carona com a moda. Mas tem electro no meu som,. mas não é só isso.

Em qual guitarrista da nova geração você vê um novo Edgard Scandurra? [Preta Gil, cantora]
Hoje em dia, os novos guitarristas são mais despojados, soltando mais a franga e não levando tão a sério o lado técnico e virtuoso. Vejo o Davi Moraes como um bom guitarrista, assim como o menino que toca com a baiana Pitty, também. Mas, sinceramente, o mais novo Edgard Scandurra sou eu mesmo!

Agora que você está tão mergulhado na música eletrônica, será que ainda seria guitarrista se estivesse começando na música hoje? [André Jung, baterista do Ira!]
Se eu começasse hoje talvez nem fosse músico. Acho que seria chefe de cozinha. Ou seria um garoto e ia querer ser do contra. Estaria ouvindo Noel Rosa, coisa que meu filho faz.

Você que é todo aberto a experimentalismos musicais. Até que ponto sua sexualidade já fez experimentalismos, também? Você já ficou com homens? [Nina Lemos, jornalista e colunista da 02 neurônio]
Não, nunca fiquei. Eu aprendi na minha família italiana que homem não beija homem. Me botaram isso muito na cabeça. Quando um tio me beijava no rosto, a primeira coisa que eu fazia era limpar. A música eletrônica me ajudou muito a quebrar isso. Eu nunca tive preconceito, mas sempre tive 99% de amigos heterossexuais. Depois que comecei a freqüentar a música eletrônica, 90% gay, 10% heterossexuais. O beijo no rosto virou natural, carinhoso, bacana. Mas nunca fui além disso. Sou hétero mas não sou machista, respeito as diferenças e, acima de tudo, respeito muito as mulheres.

Depois de 20 e poucos anos de carreira, você não esta cansado do Ira!? Não rolam uns conflitos? Você não acha o som da banda datado em relação ao que está fazendo em carreira solo? [Claudia Lima, cantora e jornalista]
é difícil falar dessa coisa do Ira! É uma banda onde eu toco há 22 anos, é meio família. E família, mesmo você estando de saco cheio, não consegue se separar. E ainda me traz muito prazer. A coisa ruim da música eletrônica é a solidão. Viajar o Brasil inteiro com duas malinhas de discos e ficar no saguão do aeroporto sozinho, depois ficar num hotel sem mais ninguém... Com o Ira!, você entra num ônibus com mais dez pessoas, um tira um sarro, risada, brincadeira, isso faz muita falta.

Você acha que a modernidade musical passa pelos timbres dos instrumentos? [Grace Gianoukas, atriz]
Acho que passa pelos timbres e pelo conceito. O que marca a diferença entre as grandes bandas são os timbres. De guitarra, de teclado, de vocal.

Quando você ficou careca? Isso te incomoda ou já comprovou na prática que é de nós que elas mais gostam? [Marcelo TAS]
Calvície é foda. Mexe pra caramba com a pessoa. Mas eu já estava esperando por isso, é coisa da família. Não sei se é dos carecas que elas gostam mais, mas acho que elas preferem os caras maduro que os moleques da idade delas.

Qual quadro você penduraria na sua lareira? [Apollo 9, produtor musical]
Muito profunda sua pergunta. Difícil respondê-la assim de supetão... [rindo] Um quadro de um anjo da guarda seria bem legal. Estou procurando um a muito tempo. Ah, falta a lareira
também!

As cenas do rock e eletrônica são completamente diferentes. Tô falando das pessoas e do comportamento delas. As reações, as drogas, os horários, preferências sexuais, os lugares freqüentados. Tudo diferente. Onde você se sente mais à vontade? [André Fischer, editor do site Mix Brasil]
Eu me sinto mais a vontade na cena eletrônica, onde as pessoas são mais sensíveis e menos broncos como os roqueiros. O rock anda muito machista e isso deixa a cena roqueira um tanto chucra. Não tenho mais paciência pra isso. Porém, na cena eletrônica, existe um personagem muito chato que chega a ser patético em alguns momentos. É o famigerado carão. Nunca sorri, não diz oi, nem tchau, tem um círculo muito pequeno de amigos que, meses depois, se tornam inimigos mortais! Vivem num eterno "blue tuesday".

Na época do IRA!, tinha alguma tiete muito famosa e/ou bonita com quem você transou e se arrependeu muito, pois a gata era péssima na cama e muito chata, tipo de ficar pegando no pé depois? [Marcelona, personagem da noite de São Paulo]
[rindo, tímido] Nossa, se teve... Deixa pra lá.


[entrevista publicada na revista Simples, em 2003]