Orelhadas sobre músicas, músicos e música

segunda-feira, 25 de julho de 2005

caetano e mautner [2002]


“hipertropicália” no palco

por Marcus Preto

Os cantores Caetano Veloso e Jorge Mautner apresentam em São Paulo o show “Não Peço Desculpa”, baseado no disco que acabam de lançar em dupla

A oportunidade é única: para platéias paulistanas, Caetano Veloso só participa do show “Não Peço Desculpa” ao lado de Jorge Mautner nos dois dias deste final de semana. Depois, os dois fazem uma pequena turnê em outras capitais e Mautner segue sozinho com o espetáculo. No palco, além das músicas-chave do disco, canções relacionadas com o passado dos dois, como “O Vampiro”, que Jorge compôs e Caetano gravou em 1979. Ou “Amanhã Eu Dou”, samba de Assis Valente gravado por Aracy de Almeida – são eles botando ainda mais pimenta no já tão sexual conteúdo do álbum. “O sexo é a graça divina. Não há pecado ao sul do equador”, explica Mautner.

Caetano, a presença de Jorge nesse disco lhe deu coragem para pisar em terrenos por onde você não pisaria sem ele?
Caetano_
Não sinceramente que eu precisasse de coragem, mas me deu uma soltura, que eu fui buscar. O ambiente mental de Jorge cria uma atmosfera de liberdade. Eu fui pedir isso a ele e me foi concedido. Esse frescor do encontro da pessoa de Jorge com o Brasil para me sentir mais a vontade para celebrar o que eu desejo celebrar e, às vezes, sinto dificuldade.

E para você, Mautner, como isso se dá?
Mautner_
Estou no céu, no Olimpo, uma alegria absoluta. Ele é o ateu mais banhado em graça divina que eu conheço.

De quem partiu a idéia de juntar Caetano e Mautner?
Caetano_ Mautner é muito absorvente na maneira de expor suas opiniões sobre as coisas, nas conversas que temos tido durante as décadas que nos conhecemos. Mais recentemente, no meio dessas conversas, apareceu o desejo de fazermos umas músicas juntos.

Você chegou a chamá-lo de “hipertropicalista”. A afinidade estética começa aí?
Caetano_ Ele foi um precursor do Tropicalismo. Muitos dos procedimentos e das perspectivas críticas que o Tropicalismo adotou, Jorge já tinha posto em prática alguns anos antes, em seus livros. E depois do Tropicalismo posto, ele tem acompanhado o que a gente faz com um entusiasmo e com uma aprovação que é maior que a nossa própria. Nem eu, nem Gil, nem Rita Lee, nem Rogério Duprat, nem Capinan, nenhum de nós é nem um centésimo do tropicalista que Mautner é - e militante.

O que músicos jovens como Kassin, Domenico e Pedro Sá trouxeram para esse trabalho?
Caetano_ Muita coisa. Eles tiveram participação decisiva já no disco. Tenho trabalhado constantemente com Pedro Sá e já trabalhei com Domenico no disco Noites do Norte. Conheci esse pessoal todo por causa do me filho Moreno. Além de músicos muito bons, eles têm uma vivência crítica requintada. Transitam muito à vontade em todos os idiomas da música popular contemporânea do mundo todo. Essa é uma turma que cresceu com computador, eles têm domínio dessa tecnologia. E os timbres que são escolhidos, o jeito de tocar. Eles conhecem o drama do gosto. Há muita identificação entre mim e eles. Chamei o Kassin para tocar nesse trabalho porque sabia que ele teria uma grande empatia com o clima do Jorge. Não deu outra.

Seu parceiro freqüente, Jacques Morelembaum, seria menos adequado a esse trabalho?
Caetano_ O Jacques poderia ter feito, e quase fez. Mas senti o Kassin mais preparado para o que eu pensava fazer com Jorge. E tem esse lance do gosto. Jaquinho é um músico estupendo, ele domina a matéria musical e não tem preconceitos. E é um instrumentista extraordinário, um dos melhores do mundo sempre. David Byrne, Sakamoto, Kassin, Davi Mores, Augusto de Campos, todos concordam com isso. Só um crítico imbecil é que poderia agredir Jacques Morelembaum. E, de fato, há quem tenha feito isso, mas isso é a mediocridade. É que nem xingar Pelé.

O que entra no repertório do show, além das faixas do CD?
Caetano_ Canções minhas muito conhecidas que eu acho que estão ligadas ao modo como Jorge vê o que ele considera o aspecto principal no meu trabalho e no trabalho dos tropicalistas ao longo dos ano. E também canções que parecem falar sobre o que Jorge representa, como “O Estrangeiro” - essa música parece ser sobre Mautner!
Mautner_ E “Resposta”, de Maysa.
Caetano_ Maysa, cantora que ocupa espaço mítico no romance de Jorge, “Deus da Chuva e da Morte”. Sambas-canções considerados de mau gosto nos anos 60, que Mautner defendia contra os preconceitos dos bossa-novistas.
Mautner_ Cantaremos “Meu Vício É Você”, de Adelino Moreira.
Caetano_ Coisas que a gente admira e quer cantar porque revela muito do núcleo do clima de nossa disposição estética e ética.

Elementos de música “brega” aparecem em todos os cantos do disco. É uma bandeira que vocês levantam?
Caetano
_ Venho me rebelando contra essa muralha que deixa de fora artistas que têm tido tão intensa importância para o povo brasileiro, como Agnaldo Timóteo, Odair José, Nélson Ned, Waldick Soriano. Sou tradicionalmente um inconformado nesse panorama. Odeio que se diga que MPB é uma instância mais respeitável de criação da música popular no Brasil e que me incluam nessa área. Vivem me exigindo, há quase uma década, que eu seja um opositor à axé music, que é exatamente uma das coisas que eu mais amo neste mundo, a música de Carnaval da Cidade do Salvador. Me obrigarem a odiar o que eu mais amo? Nada comparável a isso a não ser uma inspiração nazista. Eu jamais me dobrarei a essa exigência estúpida.

Você já gravou com Odair José...
Caetano_ A música era “Eu Vou Tirar Você Desse Lugar”. Ela é tipicamente de puteiro, que é de onde vem a palavra “brega”. Brega quer dizer puteiro, na Bahia - e, antigamente, era até palavrão que não se dizia na frente de senhoras. Depois, “brega” veio para o sul através de Antonio Carlos e Jocafi, que botaram na letra de uma música, e a palavra pegou aqui, se tornando um adjetivo que se refere a músicas que tocam em puteiro. Odair fez uma música tipicamente brega, mesmo para tocar em puteiro, falando para uma puta “eu vou tirar você desse lugar”. É lindo! Cantamos em 1973, no Anhembi, sob uma vaia horrorosa. Então eu disse: “Não há nada mais Z que um público classe A”, em 73. Mas aquilo foi só um tapinha. Não dói. E percebi que não dói porque não aprenderam nada até hoje, continuam enchendo meu saco.

Você está falando de patrulhamento?
Caetano_ Quando fui vaiado agora por cantar o funk do tapinha em meu show, repeti a frase. A música que abre e de onde saiu a frase que dá nome ao disco, “Todo Errado”, contém todos esse elementos. Ela é toda de Mautner e a considero uma obra-prima. Gostaria que tocasse nas rádios populares, como uma canção popular. Não toca porque toda essa organização do elitismo brasileiro doentio mantém esses preconceitos. Eu gostaria de furar mais esses esquemas. Um tapinha é muito pouco. Esse pessoal precisa levar porrada grossa.

O que essa “organização do elitismo brasileiro” considera de bom gosto?
Caetano_ Hoje em dia, quando a pessoa bota a palavra “rock”, parece grife de chique: “Não me venha com essas coisas bregas porque eu sou do rock”. Eu leio isso no jornal e dou risada. Quando me lembro dos insultos que nós ouvimos quando colocamos elementos de rock em nossas composições no passado vindos justamente das pessoas que queriam ser bacaninhas naquela época... Agora, os “bacaninhas” são do rock e se sentem muito finos e chiques por isso. E acham que eu tenho que agredir Ivete Sangalo e Sandy. Não!
Mautner_ Eu adoro Sandy & Júnior.
Caetano_ Não é que você tenha que gostar de tudo, não. É que você tenha mobilidade pra gostar de fato do que você gosta. Sem ser obrigado a viver num mundo de elite pequena.

[entrevista publicada no site MPBol, em 2002]