Orelhadas sobre músicas, músicos e música

segunda-feira, 25 de julho de 2005

adriana calcanhotto [2002]

“eu não sei fazer música”
por Marcus Preto

A compositora gaúcha lança Cantada tentando conciliar canção popular com poesia - e correndo atrás da música de um acorde só

Adriana Calcanhotto continua na mesma trilha. Ela acaba de lançar Cantada, sexto disco desde Enguiço, sua estréia em 1989. Nele, retoma os princípios postos nos álbuns anteriores – seja na escolha dos autores, seja na habitual referência [ou reverência] à obra de poetas e artistas plásticos. “Essa instalação do Hélio Oiticica tem uma faceta que é parecer também com uma casa que foi pelos ares”, Adriana interpreta o cenário escolhido para o primeiro clipe deste CD, da música “Pelos Ares”, parceria dela com Antonio Cicero.

A cantora destaca esse novo clipe como o melhor que já fez nesses treze anos: “Esse foi uma coisa espetacular, pois a Susana [Moraes] me exigiu como atriz. Não é como das outras vezes que sou eu, Adriana, cantando – ou dublando, como se faz - uma canção. Adorei essa experiência”.

Além de inventar sua própria versão para “Music”, de Madonna, Adriana lê “Jornal de Serviço”, poema enumerativo de Carlos Drummond de Andrade, sobre cama sonora produzida por BossaCucaNova. Também participam do CD Moreno + 2, Los Hermanos e Daniel Jobim, cada um numa faixa.


Em Cantada, você reuniu os mesmos compositores que freqüentam seus discos desde Senhas, de 1992. Isso acontece ao acaso ou o disco já é planejado dessa forma?
[rindo] Cê tá dizendo que é uma panelinha?

Bem...
É verdade, dessa vez eu visito o mesmo universo de autores. Mas eu não penso pelos autores, eu penso pelas canções. Começo separando de 30 a 40 canções, faço uma peneira e acabo chegando nesses aí. É bacana porque, na verdade, esse é o desenvolvimento do diálogo com esses autores com quem tenho parceria. Eu gosto disso.

Há o Péricles Cavalcanti habitual, em canções só dele, letra e música. Foram encomendas?
Eu encomendei o “Sou Sua”. O “Sou Seu” é uma canção que já existia num disco dele. Eu pedi pra ele mesmo vir reproduzir aquele arranjo no meu disco.

E a idéia de gravar “Music”, como aconteceu?
Adoro aquele arranjo da Madonna, acho aquela gravação definitiva. Mas eu gosto da canção e minha idéia era ficar só com ela, tirar qualquer referência do arranjo. Ficar com a letra e a batida. Depois, essa é uma canção de um acorde só, que é uma coisa que eu almejo conseguir um dia. [Por enquanto só consigo fazer canções com, no mínimo, dois acordes.] Meu desejo era ficar na letra e nesse acorde, na batida do meu violão. Aconteceu que o Daniel Jobim, que é fã de Madonna, quis comentar o arranjo todo, no piano acústico.

Por que almejar uma música de uma acorde só?
“Eu não sei fazer música, mas eu faço” – é bem esse o espírito. Tem um pouco da ideologia punk, eu acho. É também o desejo de depurar tanto uma canção que ela possa se sustentar num acorde só. Acho uma experiência interessante, dificílimo conseguir. Tenho interesse por isso. Como é a poesia de João Cabral [de Melo Neto], que corta o excesso. De ficar na essência. Quando eu ouvi “Music”, com aquele arranjo todo complexo e, embaixo daquilo, só um acorde, eu fiquei louca de inveja. Espero algum dia conseguir isso.

As músicas todas já foram compostas pensando nessa estética?
Como meu disco anterior não tinha canções inéditas, há composições neste disco que foram iniciadas logo depois da safra do meu disco Maritmo. Há canções feitas ainda quando eu morava em Ipanema. “Sobre a Tarde” fala, na verdade, de minha despedida de Ipanema.

O disco é então o retrato de uma fase da vida de Adriana Calcanhotto?
Algumas pessoas dizem que meu trabalho é existencialista. É que, minhas canções acabam me comentando, de algum jeito. Não que eu tenha vontade ou necessidade de fazer um trabalho confessional. As coisas vão acontecendo, as pessoas vão chegando, uma canção revela a outra, uma canção contradiz a outra. Elas acabam virando um instantâneo de um momento.

“Cantada”, a música, foi gravada antes por Maria Bethânia como “Depois de Ter Você”. Foi ela quem trocou o nome da canção?
Já que ela muda sempre os nomes, eu já não mando com nome. Então mandei sem nome, só a canção. Também não esperava que ela fosse gravar. Quando fiquei sabendo que ela ia gravar, liguei pra dizer o nome. Mas ela já tinha viajado. Ela só ficou sabendo que se chamava “Cantada” tarde demais. Mas a culpa é minha.

Como você entende a atitude de Bethânia ao deixar uma grande gravadora [a mesma BMG de Adriana Calcanhotto], e assinar contrato com um selo pequeno [a gravadora Biscoito Fino]?
Eu acho isso um sinal. Acho exemplar. A gente conhece a coragem de Maria Bethânia e eu não canso de me impactar com ela. E acho que, se a indústria fonográfica falir - essa indústria que não se preparou para o momento que a gente tá vivendo -, a música não vai falir. A música sobrevive.

O assunto artes plásticas está sempre presente nos seus discos, seja diretamente nas canções [como em “Parangolé Pamplona”], seja nas citações visuais dos encartes. Quanto esse assunto participa na sua forma de compor?
Não é o assunto artes plásticas. O que me interessa são as soluções que os artistas encontram, independente da mídia que eles usam. Sou uma pessoa extremamente visual, minha memória é visual e aprendi a tocar violão visualmente, decorando o desenho dos acordes. Por isso, minha música é tão visual, meio cinematográfica.

Você ainda só consegue escrever letra e música juntas ou isso já passou?
[rindo] Não passou. Nunca sentei para escrever uma letra. Fazer uma música, não é de todo impossível, mas é difícil. Sempre nasce tudo junto. Uma vez, a Fátima Guedes me pediu uma letra. Como eu não sei fazer só uma letra, peguei uma canção minha com letra e música, separei as duas coisas e mandei a letra pra ela e a música pro Antonio Cicero botar outra letra.

Ter, de cara, sua parceria com Antonio Cicero, “Pelos Ares”, tocando na novela da Globo facilita tudo, não?
Eu não sei, pois eu nunca não tive uma música de um disco numa novela. Já cheguei a ter duas. No Maritmo, “Vambora” era uma música de amor de um casal gay. Acontece que implodiram o casal gay, porque não pode ter casal gay. Com isso, a música dançou. Aí, pegaram uma outra música do disco e botaram na novela seguinte. Na prática, acho que amplia o espectro do disco. Muita gente não compraria um disco como esse se não tivesse uma música na novela. Eu não tenho a menor intenção de fazer um trabalho de qualidade pra quatro pessoas. Depois, eu adoro ter uma canção a serviço de uma situação dramatúrgica. Aquilo fica sendo trilha da novela, mas fica também sendo trilha da vida das pessoas.

Você considera seu trabalho “intelectualizado”?
Isso não é um elogio... O público é interessado em poesia, em trabalhos de qualidade. E acho que tenho uma grande oportunidade na minha mão: veicular poesia na rádio popular. É esse meu grande interesse.

Como você imagina que reage o público mais popular quando compra o CD para ouvir a música que está bombando na novela e ouve, por exemplo, você recitando “Jornal de Serviço”, poema de Drummond?
É bacana, eu acho. Um poema como aquele do Drummond, que parece que não quer nada, páginas amarelas lidas em diagonal, mas que não é nada ao acaso, acho que as pessoas ouvindo, lendo, elas... por mais estranho que possa parecer, acho que as pessoas querem isso. Querem muito.

[entrevista publicada no site MPBol, em 2002]