Orelhadas sobre músicas, músicos e música

sexta-feira, 29 de julho de 2005

doris monteiro [2005]


a dama do balanço
por Marcus Preto

Não há nada que não tenha passado pela música de Doris Monteiro, ao menos durante o [longo] período em que ela e a indústria fonográfica jogavam no mesmo time. Nascida há 70 anos, Doris cantou “profissionalmente” pela primeira vez em um programa da Rádio Nacional em 1949, quando tinha apenas 15 anos. Saiu de lá e foi fazer parte do elenco fixo da Rádio Tupi, época em que também gravou cinco discos de 78 RPM. Contratada pela Philips, passou de cantora do rádio para outra turma: a da recém-nascida bossa nova. Amaciando ainda mais a voz, gravou Marcos Valle, Carlos Lyra, João Donato, Durval Ferreira, Roberto Menescal e mais um bocado de compositores da primeira fase daquele movimento.

Três discos depois e a Odeon, que estava em fase de renovação total de cantoras [foi neste mesmo ano de 1966 que a gravadora lançou a futura sambista Clara Nunes, por exemplo], roubou Doris para seu cast. E tudo começou a mudar. Gradualmente, Doris foi deixando a bossa nova de lado e temperando seu som com o samba jazz de Walter Wanderley, com a pilantragem de Carlos Imperial e Wilson Simonal, com a estética “barato total” de João Donato, com o swing de Jorge Ben e Erasmo Carlos. Foi nessa fase que ela ajudou a formalizar [ainda que não se desse conta disso enquanto fazia] o que seria chamado de “sambalanço”. Marco Mattoli, líder do Clube do Balanço, dá sua opinião de samba-roqueiro: “Conhecer Doris Monteiro é fundamental pra quem quer entender os caminhos que o samba tomou nos anos 60/70. Não é à toa que ela nunca deixou de ser sucesso nos bailes de samba rock. Pois ela soube como ninguém dosar o samba engravatado da bossa nova com o balanço negro do morro”.

Seu último registro fonográfico aconteceu em 1992 e desde então Doris Monteiro nunca mais lançou um compacto simples sequer. Mas o ano de 2004 trouxe a surpresa. Por iniciativa de Charles Gavin, o baterista dos Titãs, 12 dos melhores álbuns da cantora foram relançados em CD. Trata-se de toda sua fase na gravadora Philips e quase toda na Odeon [os LPs que ela dividia com o cantor Miltinho devem sair em breve, é o que se promete], ou seja, o que de melhor ela fez em toda sua vida. E isso não é pouco.

Uma coisa salta aos olhos, agora que nos deparamos com o conjunto desses discos: foi Doris Monteiro quem lançou várias das canções que conhecemos hoje, sucessos absolutos de... outras cantoras. Exemplos. “Eu Hein, Rosa!” foi lançado por Doris três anos antes da gravação de Elis Regina. “Até Quem Sabe?”, um ano antes de Gal Costa incluí-la no LP Cantar [1974]. E “Diz que Fui por Aí”, lado a lado ao registro de Nara Leão – ambos são do mesmo ano. “São lançamentos de Doris Monteiro regravados por outras cantoras. É só ver o ano dessas gravações nos meus discos. Eu fiz tudo antes. Por aí você vê que eu tenho bom gosto: as cantoras procuravam no meu repertório coisas para gravar”, alfineta uma orgulhosa Doris Monteiro. Pode alfinetar, argumento para isso ela tem de sobra.

Você lançou músicas que depois fariam muito mais sucesso com outras cantoras do que na sua gravação original. Isso te dava muita raiva?
Pois é, as pessoas gravaram sempre depois de mim. “Vou Deitar e Rolar [Quaquaraquaquá]” foi outra que eu lancei antes da Elis. E músicas de Fernando César, Sidney Miller, Silvio César, Sueli Costa... tudo antes de todas as outras cantoras. Eu gravei “Bilhete” antes da Fafá de Belém. Não sei se foi coincidência, mas a Fafá foi ver o show onde eu cantava isso umas cinco, seis vezes. Em seguida, lançou a música numa novela exatamente como eu fazia: com piano e voz. É coincidência demais, não acha? Isso tem que ser comentado. As pessoas têm que saber que a gente fez aquilo antes e a Globo preferiu gravar de novo com outra pessoa para botar na novela. O porquê disso eu não sei, se me perguntarem.

Qual era sua relação com essas cantoras?
Nenhuma. Era só de “bom dia”, “boa tarde”. Nunca tive intimidade com Gal, com Maria Bethânia, com nenhuma. Elis eu conheci antes dela começar a cantar, ainda em Porto Alegre. Nós quase ficamos amigas. Ela morava lá, eu aqui [no Rio de Janeiro]. Eu falava muito para ela vir para cá. Botei isso na cabeça dela e ela veio. Mas, depois que ela chegou aqui e fez sucesso, ela mudou muito...

Você fez discos típicos de bossa nova pela Philips. Quando entrou na Odeon, seu som foi se dirigindo para o sambalanço, samba jazz e samba rock. Esse caminho era uma escolha sua, partia das suas descobertas musicais, ou era por sugestão da gravadora?
Esses da Philips foi quando eu me inseri na bossa nova. Eu não sou bossanovista, mas eu gostei muito daquilo quando surgiu. Eu sempre fui muito jazzista, sabe? Sempre gostei muito de Nat “King” Cole, de Ella Fitzgerald, de Bill Evans, Chick Corea, Herbie Hancok... Por isso que eu gostei de bossa nova. Depois, quando eu fui para a Odeon, eu já tinha gravado tanta bossa nova que eu queria fazer um novo trabalho, uma coisa diferente. Mas mesmo na Columbia, muito antes, eu já tinha gravado “Mocinho Bonito”, que foi o primeiro passo para alguma coisa com swing.

Em seu disco de 1972 você gravou “Moço”, parceria pouquíssimo conhecida da dupla Roberto e Erasmo Carlos. Qual era sua relação com essa turma naquela época?
Eu nem sabia que eu tinha gravado isso. Uma vez, um senhor chegou para mim e me pediu para cantar isso. Eu pensei que fosse “Esses Moços”, do Lupicínio Rodrigues. Achei que jamais tivesse gravado Erasmo e Roberto Carlos na vida. Cheguei em casa e fui procurar nos meus LPs e vi que o senhor tinha razão. Eu conheci o Roberto quando ele estava começando, ainda. Nos encontrávamos sempre no programa do Chacrinha e ficamos muito amigos. E eu também gravei “Garota do Pasquim” e entrei um pouco na pilantragem. Eu gostava muito daquilo. Para mim, Simonal foi o máximo.

Você era amiga do Simonal?
Muito! Você sabe que o Simonal serviu no exército com meu irmão. Um dia, os dois apareceram em casa: o Cabo Simonal e meu irmão Gilberto. “Então é verdade, você é mesmo irmão da Doris Monteiro”, ele falou com uma cara de surpresa. Disse que era meu fã número um, levou meu autógrafo em um disco e só depois foi ser cantor.

Isso foi antes dele começar a cantar?
Sim, muito antes. Você vê como esta vida é pequena... Outro caso: Maysa, por exemplo, é do Espírito Santo. Como eu estava casada com um capixaba, conheci toda a família da Maysa. Ela tinha uns 16 anos, tinha acabado de se casar, e ia para os Estados Unidos passar a lua-de-mel. Antes disso, veio para a minha casa, depois de um show meu, pegou o violão e cantou todas aquelas músicas que ela gravaria tão bem tempos depois. Já eram 10 horas da manhã e ala ainda estava ali, cantando as músicas. Eu estava morrendo de sono. Infelizmente, meu gravadorzinho não estava funcionando e eu, que tinha adorado aquele repertório todo, pedi para ela voltar depois da lua-de-mel para a gente ouvir de novo. Só que ela não voltou mais. Ou seja: perdi a oportunidade de lançar tudo aquilo.

As letras mais ousadas do seu repertório eram todas no masculino [apesar de estarem sendo cantadas por uma mulher]. Isso vinha do machismo da época? Era proibido para uma mulher cantar aquilo tudo na primeira pessoa feminina?
Não acho, não. Não era machismo. É que eu era intérprete, então não podia modificar a música da pessoa. Eram homens que haviam composto aquilo tudo e eu tinha apenas respeito pela composição. Ninguém tem o direito de mudar as letras de outras pessoas.

O que o atual relançamento da maior parte de sua obra está significando pra você?
Normalmente as pessoas só são homenageadas depois de mortas. Charles Gavin homenageou minha vida com esse projeto. Eu não gravo há 12 anos, isso é muito tempo. E eu fiquei afastada... Quer dizer, fiquei afastada do disco, não do público. Eu nunca parei de fazer shows.

Você também considera que esses discos sejam a melhor fatia da tua obra? O que eles têm de especial em relação aos outros?
Eu acho. Eu comecei no tempo dos 78 rotações. Durante cinco anos, eu só gravava um daqueles por ano. Depois, na Columbia, eu fiz dois LPs de 10 polegadas. Mas esses são mais para colecionador, a voz está muito infantil, eu era nova...

Agora que seu nome voltou à tona com mais força, você tem algum projeto de voltar a gravar?
Doris_ Isso seria maravilhoso, mas ainda não tocaram no assunto. Eu gostaria de ter uma obra nova, né? Com umas músicas inéditas do Ivan Lins, do Djavan... Quero encerrar com chave de ouro a minha carreira. A voz, afinal, continua ótima. Mas o problema é que as gravadoras agora têm uma outra atitude. É um outro esquema: lançou, vendeu, tchau. Vapt-vupt.

A que se deve isso?
O que ouço dizer é que as gravadoras não vão bem. Mas não sei se essa crise vem pelos discos piratas ou pelos discos independentes, esses que as pessoas resolveram fazer. Como as gravadoras não chamavam, as pessoas começaram a gravar discos independentes – bem mais baratos e acessíveis para o público.

Você faria um disco independente?
Olha, 50% acho que sim, 50% acho que não. É preciso muito dinheiro para fazer um disco independente que seja bonito. As orquestras, os músicos, isso tudo é muito caro. Para fazer um disco de fundo de quintal eu não gostaria. E eu teria vergonha de pedir aos músicos para fazerem de graça. E, dos discos independentes que eu ouvi até hoje, nenhum me deslumbrou. Então, para fazer um trabalho tão bonito quanto esses que eu fiz nos meus 55 anos de carreira, não posso agora fazer um trabalho mais ou menos. E os discos independentes não tocam em rádio porque, você sabe... Eu tocaria em algumas rádios porque eu tenho muitos amigos, mas seriam só nessas dos meus amigos. Então, o público não fica nem sabendo que você gravou. É preciso alardear sozinho e ficar vendendo em shows, porque você não tem uma gravadora que distribua isso de Porto Alegre até Manaus.

O problema maior é a distribuição?
E a divulgação. Você nunca vai poder mostrar seu trabalho na televisão porque ali existe o jabá. Você tem que pagar para tocar na televisão, excetuando o programa do Ratinho. Isso aí você pode botar na tua matéria entre parênteses: excetuando o Ratinho, que é uma pessoa que ajuda a todos, você só canta na televisão se tiver jabá. Se eu fosse muito rica, faria um disco maravilhoso, com orquestra, um excelente estúdio... Gastaria R$ 300 mil. Aí eu pagaria jabá para tocar em televisão, tocar em rádio...

Como você entende o [e o que acha do] caminho que a música popular brasileira tomou [e onde ela veio parar] nesse tempo em que você esteve fora dela?
Ih, isso é uma coisa difícil de falar numa reportagem porque eu posso me indispor com muita gente. Tem muito pouca coisa que eu goste, acho que dá para contar nos dedos.

Não existe algum compositor da nova geração que te atraia?
Não conheço os compositores novos.

Quem é a nova grande cantora do Brasil?
Maria Rita eu acho excelente. Eu sempre achei Elis Regina a maior cantora do Brasil e a filha tem o mesmo estilo dela. Quando Maria Rita foi lançada, eu disse “graças a Deus!” Elas são muito parecidas, mas é uma coisa genética. A Maria Rita nem gosta disso. Mas graças a Deus que ela existe: pelo menos a gente pode voltar a ter uma cantora excelente. Se ela se parece com a Elis, ela se parece com coisa muito boa.


os discos

Philips

Doris Monteiro [1961]
Estréia de Doris no formato LP – e na gravadora Philips. A cantora do rádio fã de João Gilberto vira cantora de bossa nova. Destaque para “Palhaçada”, samba malandro de Haroldo Barbosa e Luiz Reis que tem primeira pessoa no masculino.

É Gostoso Sambar [1963]
É ninguém menos que o organista Walter Wanderley [então, marido de Isaurinha Garcia] quem acompanha Doris nesse seu segundo disco pela Philips. Apesar da primeira faixa ser um clássico dor-de-cotovelo de Paulo Vanzolini [“Volta por Cima”], é a bossa nova quem dá o tom: Roberto Menescal, Carlos Lyra, Vinicius de Moraes...

Doris Monteiro [1964]
A bossa se aprofunda no terceiro e último álbum da cantora para a Philips. Walter Wanderley ainda comanda os arranjos de algumas faixas – os outros ficaram sob a batuta do maestro Lindolfo Gaya. No repertório, Marcos Valle [“Samba de Verão”, “E vem o Sol” e “Razão do Amor”], João Donato [“Sambou... Sambou”] e samba de Zé Kéti [“Diz que Fui por Aí”, no mesmo ano em que Nara Leão o gravou].

Odeon

Sinceramente [1966]
Começa aqui a fase Odeon de Doris Monteiro e também seu período mais fértil. A bossa nova continua presente, principalmente através compositores da segunda fase do movimento: Chico Buarque [“Meu Refrão”], Baden Powell [“Apelo”] e Francis Hime [“Sem Mais Adeus”].

Mudando de conversa [1969]
A pilantragem começa a dar o ar da graça no segundo disco de Doris na Odeon: ela estava realmente mudando de conversa, musicalmente. “Garoto Paissandu”, de Mariozinho Rocha [!], também chegou a fazer sucesso considerável. De quebra, um Tom Jobim quase inédito naquela época: “Wave”.

Doris Monteiro [1970]
A pilantragem estava mais que instalada em Doris no ano de 1970. Temos aqui Erasmo Carlos [“Coqueiro Verde”], Jorge Ben [“Se Você Quiser, Mas Sem Bronquear”], Nonato Buzar [“A Feira”] e até Carlos Imperial [“Garota do Pasquim”]. É neste álbum que está a gravação de “Vou Deitar e Rolar [Quaquaraquaquá]”, que Doris jura ter acontecido meses antes que a de Elis Regina.

Doris [1971]
Uma das músicas mais lembradas quando se trata de Doris Monteiro está neste seu disco de 1971. Trata-se de “É Isso Aí”, de Sidney Miller – que Paula Lima regravaria no começo do século XXI. Suculento como poucos, o álbum traz ainda regravação de “De Noite na Cama” [que Caetano Veloso compôs especialmente para Erasmo Carlos], malandragem clássica de Noel Rosa [“Conversa de Botequim”], Toquinho & Vinicius [“Ao Amigo Tom”] e por aí vai...

Doris [1972]
Espécie de continuação do anterior [o que é uma ótima notícia], o álbum de 1972 pisa ainda mais fundo nas canções com sabor de malandragem. Quem presta serviço aqui são as pérolas pouco conhecidas de Sidney Miller, Antonio Carlos & Jocafi e “Moço”, da dupla Roberto e Erasmo Carlos, que Doris sequer se lembrava de ter gravado.

Doris [1973]
No mesmo ano em que Gilberto Gil estourava com “Eu Só Quero um Xodó” num compacto, Doris gravava o xote em seu LP. Mas foi ela quem lançou, um ano antes de Gal Costa, a belíssima “Até Quem Sabe?”, de João Donato. “Palhaçada” está de volta, mais balançada que antes.

Doris Monteiro [1974]
Muito repertório pré-bossa nova aparece no álbum que Doris lança em 1974. Há a dor de cotovelo de Lupicínio Rodrigues [“Vingança”], o samba canção e o bolero acafonado [e, por isso, divertido] de Angela Maria [“Nem Eu”, de Dorival Caymmi e “Amendoim Torradinho”, de Henrique Beltrão] e a regravação de seu próprio sucesso “Se Você Se Importasse”, o primeiro de sua carreira.

Agora [1976]
Doris já tem, em 1976, um som com a sua cara, de personalidade absolutamente definida. Tudo que ela canta vira ela: Gilberto Gil e João Donato [“Lugar Comum”], Tom e Vinicius [“Lamento no Morro”], Dafé [“Pra Não Padecer”]. Mas pouca coisa é melhor que “A Banca do Distinto”, samba quebra-barraco delicioso de Billy Blanco, cheio de desaforos. E, claro, “Eu hein, Rosa!” – três anos antes de Elis Regina.

“Doris e Lúcio” [1978]
Show gravado em dobradinha com o cantor Lúcio Alves no Projeto Pixinguinha sob a direção de Hermínio Bello de Carvalho. Voltam, então, os maiores sucessos individuais dos dois. De Lúcio, “Sábado em Copacabana”, “Duas Contas”, “Valsa de uma Cidade”. De Doris, “Se Você se Importasse”, “Mudando de Conversa”, “É Isso Aí”.

[íntegra da entrevista publicada na revista Bravo!, em janeiro de 2005]