Orelhadas sobre músicas, músicos e música

quarta-feira, 25 de janeiro de 2006

marina lima [2003]


entrevistão: marina lima

por Marcus Preto e Ricardo Cruz


Ela nos recebeu em sua cobertura na Lagoa, Rio, numa noite atipicamente carioca: céu cinza e chuva. E abriu mais que a casa: deixou que nossas perguntas tocassem seu coração *


*Esse texto de abertura cafona não é meu, juro. E nem do Quinho.


Você morou nos EUA?
Fui com 5 anos, meu pai foi ser gerente de um banco que hoje empresta dinheiro para o Brasil e a sede é em Washington. Ele se mudou de mala e cuia! Fiquei oito anos vendo o Brasil só uma vez por ano. Detestava morar lá. Nasci no Rio, com a praia e areia. Quando cheguei em Washington, inverno, 12 graus abaixo de zero, foi um choque térmico, quase congelei. Hoje, acho que foi importante ter entrado em contato com outra cultura, bacana pra minha formação, mas sofrido. Por isso me peguei à música, porque sentia muita angústia. O violão me aquecia.

A música que você tocava era do Brasil?
Era tudo, ouvia muito rádio. Música latino-americana... Na época - anos 60 - estavam começando vários movimentos. Com 5 anos, vi os Beatles na televisão e foi um choque, mudou minha vida. Ouvia música brasileira porque meus pais adoravam. Elis, Jair Rodrigues, Elizeth Cardoso... Também a música inglesa que invadiu os EUA: Beatles e Stones, com música americana negra. Muita coisa! Foi uma barra voltar ao Brasil, porque meus pais não queriam. Viemos de navio para demorar mais e, nele, estava o Tom Jobim.

Aí você pirou...
Nossa! Eu seguia ele. Quando participei do especial de 60 Anos do Tom, perguntei se ele se lembrava de mim, e ele lembrou. Não levei o violão, que foi com a bagagem e, na viagem, percebi como estava ligada com a música para o resto da vida, porque quase fiquei desesperada. Aí, voltei para o Brasil e não sabia ler nem escrever em português.

E como foi essa volta?
Cheguei com 12 anos, fui estudar. Não me adaptei à escola, era muito diferente, tomei um susto. Acabei sendo suspensa, revoltada com a autoridade que existia ali. Época da ditadura, tinha uma coisa opressiva no país. Meu pai não se adaptou também. Foi traumática nossa volta por causa da ditadura. Eles perseguiam qualquer pessoa. Tinha pavor da polícia, do Dops. Invadiram minha casa duas vezes atrás do [Antonio] Cicero [filósofo e poeta, irmão e parceiro artístico de Marina], meu pai ficou em pânico, mandou ele para Londres. A gente teve primos presos, então ele preferiu voltar para os EUA.

Você ficou ou foi também?
Eu já cantava. Tinha entrado em contato com o Tropicalismo, com a Gal, que na época foi um grande ídolo, tinha o cabelo crespo, tocava guitarra... Com eles, senti um espaço, vi que tinha lugar pra mim, porque me sentia estrangeira aqui.

Você era estrangeira nos dois lugares!
Aqui e lá. Acabei optando por voltar. O Cicero foi de Londres, depois foi fazer pós-graduação numa faculdade em Washington. Nos encontramos lá.

E a música entrou de vez na sua vida...
Comecei a estudar música a fundo e naturalmente passei a compor e a cantar. Cicero começou a escrever poesia em português, sonetos, com uma métrica bacana pra musicar. A gente dormia no mesmo quarto e, numa dessas noites de insônia, peguei o poema "Alma Caiada", musiquei e Cicero adorou. A música era um elo entre a gente, porque temos uma diferença de idade de dez anos e, quando você tem 10 e o cara 20, não há nada em comum.

Mas a carreira mesmo, como rolou?
Compus umas músicas e mandei a fita para a Tia Leia, que disse: "Você devia tentar fazer carreira no Brasil". Tinha acabado de fazer 17 anos e vim passar um mês aqui. Coincidiu que estava começando a Warner, com André Midani, e fui fazer uma audição. Foi o primeiro lugar que procurei - e a primeira contratada deles. Assinei três semanas depois da audição, liguei para o Cicero e falei: "Nosso negócio virou profissional, volta". Ele voltou, a gente começou a trabalhar e ganhar dinheiro de uma hora para a outra. Foi muito rápido, muito louco! Sabia que tinha talento, mas não que ia ser profissional, cantora, que ia pisar em um palco...

E quando a grana foi entrando, o que você fez?
Cara, gastava tudo com os meus amigos... Para mim, aquilo era um prêmio. Foi bacana porque minha carreira foi gradual, foi me dando experiência. Não foi essa coisa feito RPM, Daniela Mercury... Não estourei feito uma bomba.

A Gal foi a primeira pessoa a gravar uma música sua, não é?
A Bethânia foi a primeira, mas foi censurada, depois a Gal gravou. A melhor gravação de música minha foi Lulu Santos, com "Fullgás". Ele regravou de uma maneira inteira, com levada, com o conceito. Fez uma coisa meio que homenageando, botou uma risada minha e tal, mas cantou como música dele. Foi emocionante.

Foi com "Fullgás" que a coisa pegou mesmo, né? Como foi?
Todo o disco Fullgás tinha uma sonoridade que eu gostava, que era bateria eletrônica, teclado e tal. O Lobão era baterista da minha banda e chegou com um tecladinho com bateria eletrônica embutida, um Casio barato, babaca, mas diferente para a época. Comprei um e comecei a compor com aquelas levadas, fiquei muito louca por aquilo. E queria que a música "Fullgás" fosse a trabalhada, e o Menescal não. Sempre fui uma pessoa vira-lata, percebia que tinha espaço para isso porque saía muito, vivia na noite, dançando, sabia que tinha espaço, ele que não sabia... A partir daquele trabalho, fiquei conhecida nacionalmente.

Dos seus discos, Fullgás é o que você mais gosta?
Não, gosto mais dos que fiz na EMI, porque estava com muita autonomia, me sentindo segura. Em 1989/1990 fui para São Paulo estudar guitarra. Voltei, fiz o Marina Lima, que é todo em cima de harmonia de guitarra, com acordes mais agudos. Esse disco é meio notório. Comecei a assinar meu nome inteiro e estava compondo menos com o Cicero. Ele precisou seguir um caminho, eu precisei me sentir mais segura sem ele, a gente abriu um pouco naquele período, e ficou Marina Lima, o primeiro da EMI. Os três discos que fiz lá, gosto muito: Marina Lima, O Chamado e Abrigo. Adoro esses discos.

Depois disso, as coisas mudaram, o que foi exatamente que aconteceu?
Fiz aquele disco, Registros à Meia-Voz. Foi quando tive uma puta crise existencial, de identidade mesmo. A coisa da voz - hoje não tenho a menor dúvida - era emocional. Mas como a voz era minha identidade, minha expressão no mundo era cantar... Fiquei profissional cedo, nunca soube se eu era uma outra coisa também. Fui isso a vida inteira, sempre: música, disco, show, música, disco... Comecei a questionar tudo. Todas as minhas escolhas importantes. Se eu deveria ter casado, por que não tive filhos, se era música, tudo o que era primordial, e aí fiquei insegura. Não dá para levar isso no automático! Uma das coisas que consegui com meu público é uma relação muito verdadeira. Dá para ver: os discos são um raio X de cada momento, de como estou. Não sou atriz. Realmente, minha expressão é música! Naquele momento, eu estava com muito prestígio e com um público enorme, mas muito infeliz. Não com a carreira, era com a minha vida! Mas como a carreira faz parte da minha vida, não dava para levar. Ao mesmo tempo, me sentia um cabide de emprego, muita gente dependia de mim: uma estrutura de 25 pessoas. Não podia parar! Fazia disco, show, uma carreira muito virginiana, uma formiguinha muito construída, disciplinada, certinha. Estava cantando, ensaiando, mas queria parar e não tinha como.

Naquele momento você queria parar para sempre?
Não. Queria parar para entender o que estava acontecendo. Saquei que era crise existencial, não musical, não começou pela voz. Me separei, mudei de casa, de gravadora, mudei de tudo na minha vida, todos os alicerces que eram seguros, e fui ficando sem chão. Sem perceber, fui zerando tudo meu. Mas tinha a carreira, as pessoas que dependiam de mim e eu sem coragem de parar, aí que pegou na voz. Comecei a cantar travada, não sentia prazer, e as pessoas em volta fingiam que não estavam percebendo, ninguém dava força. Então, a única forma de parar foi não conseguir fazer: "não estou conseguindo cantar, está me incomodando, não estou bem, tenho que parar".

Como é que você saiu dessa crise?
Quando comecei a entender o que estava acontecendo e a me certificar de que as escolhas não tinham sido tão más assim. Não casei porque não era para ter casado, não tive filhos porque era para ter tido mesmo.

Você pensa nisso de filhos?
Para mulher, tem hora que bate mesmo a coisa do instinto maternal e fica um vazio. Eu me dediquei muito à carreira e, quando me vi a sós, com essa sensação, foi brutal, parecia que eu tinha cometido um erro. Hoje não vejo assim, mas tive que passar pela crise para entender.

E a voz veio voltando aos poucos?
Quando comecei a ficar mais em paz. E fazer aula de canto, de novo. Cordas vocais são músculos, é que nem malhar: se fica sem exercício, fica fora de forma.

Não era um problema físico?
Nada! O chato, nessa época, é que eu dizia e ninguém acreditava, diziam que eu estava fingindo. Isso foi um saco. Fiquei em depressão. Tive uma crise e, como não descobria o que era aquilo, fiquei com medo. O negócio da depressão que é uma merda - e que agora entendo. É assim: você está aqui, mas não está. Você se sente um morto-vivo, não tem energia. Fica sem força porque fica com medo. Medo de fracassar, de não conseguir, medo! Você fica fora, feito alma penada, esse é o problema.

Você chegou a se medicar?
Tive que fazer tratamento, porque é difícil voltar sozinha. É uma doença. Até encontrar esse médico, que me ajudou a me acalmar, a ver que isso era mais comum do que eu pensava, e também me deu uma segurança de que isso ia passar. O problema é a desinformação! Na hora que encontra o tratamento é muito rápido.

E o Acústico MTV?
O barato de fazer esse Acústico MTV é porque esse é o formato que deu certo no Brasil: ao mesmo tempo que é bacana, é popular. É isso que quero agora. Não gosto de revisitar minhas coisas. Lulu Santos faz muito isso, acho engraçado, não sou assim, para mim é desafio. Mas gosto de desafios. Falei: [com cara contrariada] "Ahhhh, revisitar minhas obras..." Quando fiz aquelas coisas, achei que já tinha feito o melhor. Mas comecei a pensar, e as viagens pelo Brasil... As pessoas são carentes, você faz um show, por exemplo, em Caruaru, e pedem "À Francesa", "Pra Começar", faz parte da história delas. Ao mesmo tempo, por ter amigos jovens, tenho um público mais jovem também, em grandes centros como São Paulo, Rio, Salvador. Falei: "Gente, talvez seja uma forma, não é isso o que o Lulu fez? Ficou renovando o público dele com aquelas canções?" E comecei meio que a me preparar, a fazer lista de músicas e a gostar. Aí a MTV me mandou todos os Acústicos, comecei a ver... Você sabe que sou louca pelo Nirvana? Pra mim é a banda mais importante depois dos Beatles.

O Nirvana?
Tenho a impressão que, de alguma maneira, Kurt Cobain ouviu muito o McCartney, absorveu aquilo também. Acho que Los Hermanos tem um pouco disso, de pegar coisa brasileira e misturar com espírito de rock e criar contrastes. Mas o Nirvana... Eles romperam, criaram uma coisa nova, um novo estilo. O Acústico deles é deslumbrante, uma coisa absurda, crua, é o melhor Acústico.

Você assistiu todos esses Acústicos? Gostou muito de algum?
O do Lulu Santos. Foi muito bem-feito.

E o da Legião Urbana?
Não dá para falar da Legião. Na minha geração, era "A" banda, sempre foi mais forte que Paralamas, por exemplo. Tinha uma coisa totalmente hipnótica na Legião! O Renato parecia um Messias, e aquilo batia para mim. Não era meu Messias, mas eu percebia que tinha alguém fazendo uma coisa muito importante no Brasil. Aquilo era uma coisa arrebatadora! A maneira de ele cantar, o jeito que se apresentava, e a banda tinha um magnetismo, eram muito carismáticos, muito impressionante.

Você ainda tem esse lance de sair, de estar nos lugares, vendo e vivendo o que está acontecendo?
Tenho amigos de quase todas as idades. Tenho 47 anos, mas até por ser solteira, saio muito. Adoro música eletrônica. Gosto da possibilidade que ela me dá. Uma coisa que sempre me ressenti, no meu trabalho, é que componho com o Cicero, mas é solitário. A música eletrônica, pelo fato de ter um instrumento virtual ali no teclado do computador que imita qualquer som, me deu uma liberdade! Novo é o que me atrai. Posso sentir atração por um disco da Nana Caymmi ou da Elza Soares, mas tem que bater com uma coisa que eu não domino. Uma coisa que já tenha sido vista e revista me cansa, porque tenho ambição de criar, sou compositora! Mas não sou saudosista, gosto do tempo que vivo.

Você acorda tarde?
Não. Tenho três cachorros, eles me enlouquecem. E dou muita liberdade, muito espaço para eles. Quando vejo, me acordaram. São poodles, mas eles acham que são cães de guarda! É o Pedro, a mulher e a filha deles. Uma familiazinha que tem sua forma de operar, adoro aquilo! Como não tive filhos, eles são... Só faltam falar realmente, entendeu?

Você é ciumenta?
Já fui muito ciumenta garota, mas gosto de me depurar, de me tornar um ser humano melhor,,, Não acho que está errado ter ciúme, mas gosto de viver em paz. Outro dia vi um plástico num carro na minha frente, estava escrito: "Seja realista, sonhe". Gosto de sonhar com o que é possível. Gosto da realidade. O barato é tentar viver bem e se policiar, se depurar para ter uma relação saudável. Poder ser feliz, que é o que todo mundo quer.

Então você se tornou uma pessoa bastante exigente, no que diz respeito a relacionamento, é isso?
Sabe o que acontece? É engraçado: com 40 anos as pessoas estão casadas ou já desistiram, tão fodidas ou estão aí e ninguém sabe onde... Acabo me relacionando com gente mais jovem não porque tenha esse fetiche de "hummm, carne nova", nada disso. Mas as pessoas mais novas não têm muito medo, querem aprender, têm mais vontade.

Mas não rola uma falta de paciência com os jovens às vezes?
Rola, mas depende do nível do relacionamento. Tenho vontade de casar, mas não sei se vou, é difícil... Trabalho com música, em casa, quem está do lado acha que você está brincando, você não pega um carro e vai para um lugar... As pessoas não entendem, interrompem: "Ah, para aí, dá uma atenção, larga o violão", sabe? Tem que ser alguém que queira muito entender sua vida e ofício. Agora, se o ideal existe, será bacana encontrar alguém com uma experiência de vida mais parecida com a minha. Não quero acabar minha vida sozinha, não. Adoro namorar! Gosto de vida a dois.

Se apaixonar aos 47 anos é mais difícil?
Será? Não acho, não, sabe por quê? Tem um lado meu, uma menina aqui dentro de uns 17 anos que tem milhões de coisas que ainda estão ali... Tem um lado meu meio intocado. A gente tem isso, né? A gente tem tantos mistérios aqui dentro!

[entrevista publicada na "Revista MTV" 24, em abril de 2003]