Orelhadas sobre músicas, músicos e música

terça-feira, 16 de maio de 2006

nando reis [2006]



Dependente do Amor


Quando se ouve um disco de Nando Reis, a gente quase pode juntar os pés e jurar: ninguém no mundo leva o amor mais a fundo do que ele. Sempre à flor da pele, as músicas de Nando vão na ferida com tanta intensidade que fazem até lembrar Cazuza ou Renato Russo, seus irmãos de geração que não estão mais por aqui. Mas Nando está vivo, muito vivo. E acaba de lançar um CD novinho. Autobiográfico como de costume, "Sim e Não" é quase uma reportagem musical dos últimos anos da vida de seu autor. E, por identificação imediata, conta também as historinhas de qualquer um de nós que, em algum momento, já tenha levado o amor às últimas conseqüências

por Marcus Preto

"Sou só metade se você é meu par/ Eu só queria com você me casar/ E você me completa" [Monóico]
O tema casamento é recorrente em várias de suas músicas – inclusive em duas do CD novo. Só mesmo o casamento pode dar alento à alma do roqueiro Nando Reis?
Eu acho que sim. Existe uma procura que, na minha forma arcaica de ser, pressupõe uma situação de conforto. E o alento tem a ver com essa desesperada busca de tranqüilidade e paz que, nas minhas contradições, me deixava muito aflito. A presença dessa idéia na quase totalidade das músicas desse disco reflete o estado emocional que eu atravesso agora.

"Teríamos futuro se eu não fosse um selvagem/ Passearíamos velhinhos em pleno calçadão" [Caneco 70]
Esse Nando que quer casar vive um conflito com o Nando libertário, que não quer abrir mão das novas experiências?
Eu nunca fui afeito a dogmas. Nada deu certo pra mim quando eu agi por exclusão. Das coisas mais prosaicas às mais fundamentais, eu nunca pude trocar um vício por outro. Eu sempre quis ter a oportunidade de não ser viciado em nada pra poder escolher. E a escolha é Sim e Não. O fato de eu estar aprendendo a dizer "não" como uma forma de liberdade é muito contrária a tudo que eu acreditei durante muitos anos. Queria experimentar tudo, fazer tudo. Isso criou um mito que muito me iludiu e muito me desiludiu: o de que querer tudo era poder fazer tudo. E agora acho que não. Gosto de dizer "não" para isso para poder dizer "sim" para aquilo.

"Não sei se comigo foi feliz ou não/ Não sou exatamente o cara mais fácil que existe/ Mas posso dizer que para sempre te trarei dentro do meu coração" [Caneco 70]
Mesmo que uma relação amorosa acabe na prática, o amor que foi cultivado nela pode sobreviver a tudo?
Embora algumas vezes não seja possível dar continuidade à união formal, a permanência do amor dentro do coração pode ser sobrepor à interrupção da convivência. Isso é uma forma bacana de concepção de casamento, também. E de dizer que a intensidade da relação amorosa pode ter temporalidade na circunstância fatual, mas ela tem permanência emocional indelével. Eu venho de uma separação de um casamento de vinte anos, depois de uma outra de mais de dois. E a minha cicatrização dessas interrupções me ensinaram que é possível manter a continuidade da relação amorosa sem necessariamente a convivência cotidiana. É preciso relevar a gravidade da dor, botando tudo de um ponto de vista otimista ou preferindo enfatizar a permanência e a continuação em favor de ficar patinando naquilo que foi o conflito. Vamos ficar com o que foi bom, o que não é mentira.

"Como se o mar/ Entrasse em casa/ Lavasse as mágoas/ E nos trouxesse a calma/ E a paz que há na gente" [Como se o Mar]
Qualquer relação profunda pode ser reciclada?
Acho sinceramente que sim. Não que ela seja obrigada a ser, mas ela deveria pretender isso. Buscar esse reenquadramento é uma condição para qualquer relação que pretenda ter futuro. Principalmente um casamento, que busca ser estável e é quem mais convive com instabilidades. Se ele não se reconfigurar o tempo todo, vai se caracterizar por uma constante irritabilidade. Muitas vezes, há na convivência muito íntima um tal conhecimento e proximidade da outra pessoa que, imperceptivelmente, você vive no ataque e faz disso uma espécie de linguagem. Eu sei porque eu faço isso, já fiz demais. Mas cansei, encheu o saco ser assim. Eu quero mais é gostar...

"E agora, como eu passo sem te ver/ Se o seu nome está gravado no meu braço como um selo?"
Você tatuou um N no pulso esquerdo, a inicial de sua nova namorada, Nani. Tatuagens ficam para sempre; namoradas, nem sempre. Você teria feito a tatuagem se a letra N também não pudesse ser entendida como a inicial de Nando?
Eu não sei. Sem dúvida nenhuma, o fato de ser um N me poupará de um possível dissabor se fatalmente uma separação acontecer. Mas eu não tatuaria um N se não fosse por conta dela. Não sou tão egocêntrico assim. A coincidência facilita, mas me agrada mais exibir a letra dela do que a minha própria.

"A alegria é um presépio/ A tristeza, tentação/ Três Marias de um mistério/ A surpresa em procissão" [Sou Dela]
Apesar desse novo disco novo ter um tom aparentemente alegre, as letras mantém o peso e a intensidade habituais do seu estilo. A depressão já rondou sua vida?
Eu não sou um sujeito deprimido. Mas dizem que eu sou. [rindo] Garanto que a forma da minha depressão não é algo que me imobilize, prostre ou me deixe triste. Eu sempre confundi um pouco euforia com felicidade. E demorei muito tempo para conviver bem com a tristeza sem ter a desesperada necessidade de mascará-la com euforia. A frase "a tristeza é tentação" é a minha resistência a esses estados de vitimização que acabam passando a responsabilidade da sua insatisfação a um terceiro elemento. Essa tentação de não se achar o agente da sua tristeza facilita um pouco, é muito fácil transferir as responsabilidades para os outros.

"Não sei se o mundo está são/ Mas pro mundo que eu vim já não era/ Meu mundo não teria razão/ Se não fosse a Zoe" [Espatódea]
Você compôs uma canção para Zoe, sua filha mais nova. Como anda a briga em casa por quem ganha mais músicas do pai?
Fiz essa música movido por uma cobrança dela, eu queria agradar minha filhinha. Antes disso, nunca tinha composto assim, como se fosse uma tarefa. A Zoe despertou isso em mim, e há muitas outras coisas que ela me desperta. Ela é minha única filha ruiva, tenho outros três filhos que não são. Inegavelmente, isso é o elemento de encantamento.

"Eu sou um homem, você é uma mulher/ Você me come porque eu quero ser sua mulher/ E eu quero o homem que come essa mulher/ Será que você me entende?" [Monóico]
Em alguns momentos de seu disco, a linha entre o masculino e o feminino é bem misturada, indefinida. É essa a proposta?
A proposta é dissolver fronteiras. A canção a qual você se refere [Monóico] aborda uma relação sexual entre um homem e uma mulher. E, a partir desse encontro clássico de côncavo e convexo, eu vou contando que não me interessa, numa relação desse grau que pretenda ter a fusão de corpos, que se estabeleça esses estigmas que tendem a valorizar coisas como hierarquia ou função. Pouco interessa quem vai mastigar, beijar ou enfiar o dedo no cu. Não estou pretendendo dizer que eu tenho uma receita legal, mas sim: cada um faça o que quer. E eu acho que o maior tesão que existe é... tudo! Eu falo o que vivo, o que sou, o que gosto e como me vejo dentro do mundo.

[íntegra da entrevista publicada na revista QUEM, em abril de 2006]